Fisiopatologia
A maior parte da bilirrubina é produzida quando a hemoglobina é quebrada em bilirrubina indireta (e outras substâncias). Esta é ligada à albumina e transportada no plasma para o fígado, onde é captada pelos hepatócitos e conjugada com ácido glicurônico para se tornar hidrossolúvel. Bilirrubina direta é excretada pela bile no duodeno. No intestino, bactérias metabolizam a bilirrubina para formar urobilinogênio. Parte desse urobilinogênio é eliminada nas fezes e parte é reabsorvida, extraída pelos hepatócitos, reprocessada e reexcretada na bile (ciclo entero-hepático — Visão geral do metabolismo da bilirrubina).
Mecanismos da hiperbilirrubinemia
Consequências
O prognóstico final é ditado primariamente pela causa da icterícia, bem como pela presença ou não e pela gravidade da disfunção hepatocelular. Disfunção hepática pode resultar em coagulopatia, encefalopatia e também em hipertensão portal (que por sua vez pode determinar o aparecimento de sangramento digestório).
Etiologia
Ainda que a hiperbilirrubinemia possa ser classificada em não conjugada e conjugada, muitas são as doenças hepatobiliares que cursam com a elevação de ambas.
Muitas condições ( Mecanismos e algumas causas da icterícia em adultos), incluindo o uso de certos fármacos ( Alguns fármacos e toxinas que podem causar icterícia), podem causar icterícia, mas as mais comuns são
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Hepatite inflamatória (hepatite viral, hepatite autoimune, hepatite tóxica)
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Obstrução biliar
Mecanismos e algumas causas da icterícia em adultos
Mecanismo |
Exemplos |
Achados sugestivos* |
Hiperbilirrubinemia não conjugada |
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Aumento na produção de bilirrubina |
Comum: hemólise Menos comum: reabsorção de grandes hematomas, eritropoese ineficaz |
Pouca ou nenhuma manifestação clínica de doença hepatobiliar; eventualmente, anemia e equimoses Bilirrubina sérica geralmente < 3,5 mg/dL (< 59 μmol/L) ausência de bilirrubina na urina e aminotransferases normais |
Redução da captação hepática de bilirrubinas |
Comum: insuficiência cardíaca Menos comum: fármacos, jejum prolongado, shunt portossistêmico |
— |
Redução da conjugação hepática |
Comum: síndrome de Gilbert Menos comum: etinil-estradiol; síndrome de Crigler-Najjar; hipertireoidismo |
— |
Hiperbilirrubinemia conjugada† |
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Disfunção hepatocelular |
Comum: fármacos, toxinas, hepatite viral Menos comum: doença hepática alcoólica, hemocromatose, colangite biliar primária, colangite esclerosante primária, esteato-hepatite, doença de Wilson |
Nível de aminotransferases geralmente > 500 U/L |
Colestase intra-hepática |
Comum: doença hepática alcoólica, fármacos, toxinas, hepatite viral Menos comum: doenças infiltrativas (p. ex., amiloidose, linfoma, sarcoidose, tuberculose), gestação, colangite biliar primária, esteato-hepatite |
Icterícia de instalação gradual, prurido eventual Se intensa, acolia fecal e esteatorreia Se de longa duração, perda ponderal Fosfatase alcalina e gama-glutamiltransferase geralmente > 3 vezes o limite superior do normal Aminotransferases < 200 U/L |
Colestase extra-hepática |
Comum: litíase de ducto hepático principal (hepatocolédoco), câncer de pâncreas Menos comum: colangite aguda, pseudocisto pancreático, colangite esclerosante primária, estenose cicatricial de via biliar relacionada com procedimentos prévios, outros tumores |
Dependendo da causa, manifestações possivelmente semelhantes àquelas da colestase intra-hepática ou doença mais aguda (p. ex., dor abdominal e vômito pela presença de cálculo biliar ou pancreatite) Fosfatase alcalina e gama-glutamiltransferase geralmente > 3 vezes o limite superior do normal Aminotransferases < 200 U/L |
Outros mecanismos menos comuns |
Distúrbios hereditários (principalmente a síndrome de Dubin-Johnson e síndrome de Rotor) |
Enzimas hepáticas normais |
*Os sinais e sintomas da doença causal podem estar presentes. |
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†Bilirrubina está presente na urina. |
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GGT = gamaglutamil transferase. |
Alguns fármacos e toxinas que podem causar icterícia
Avaliação
História
História da doença atual deve incluir início e duração da icterícia. Hiperbilirrubinemia pode causar escurecimento da urina antes que a icterícia seja visível. Assim, o início da colúria deve indicar de forma mais precisa o início da hiperbilirrubinemia que o aparecimento da icterícia. Sintomas associados devem ser analisados, tais como febre, pródromos geralmente (p. ex., febre, mal-estar geral, mialgia) antes da icterícia, alteração na cor das fezes, prurido, esteatorreia e dor abdominal (incluindo localização, intensidade, duração e irradiação). Sintomas importantes sugerindo gravidade da doença incluem náuseas e vômitos, perda ponderal e também sinais ou sintomas de coagulopatia (p. ex., sangramento gengival ou raios de sangue nas fezes).
Arevisão dos sistemas deve procurar sintomas de possíveis causas, incluindo perda ponderal e dor abdominal (câncer); dor articular e edema (hepatite autoimune ou viral, hemocromatose, colangite esclerosante primária, sarcoidose); amenorreia (gestação).
A história clínica deve identificar agentes ou doenças causais conhecidas, tais como as doenças hepatobiliares (p. ex., litíases, hepatites, cirrose); doenças causadoras de hemólise (p. ex., hemoglobinopatias, deficiência de G6PD); e alterações relacionadas com doenças hepáticas e/ou biliares, incluindo doença inflamatória intestinal, doenças infiltrativas (p. ex., amiloidose, linfomas, sarcoidose, tuberculose) e infecção pelo vírus HIV ou aids.
História sobre uso ou não de fármacos deve incluir questões sobre uso ou exposição a toxinas sabidamente hepatotóxicas ( Alguns fármacos e toxinas que podem causar icterícia) e sobre vacinação contra as hepatites.
História cirúrgica deve incluir questões relativas a possível abordagem do trato biliar (causa potencial de lesões cicatriciais).
História social deve investigar fatores de risco de as hepatites ( Alguns fatores de risco de hepatite), tempo e duração do uso de álcool, uso de drogas injetáveis e história sexual.
História familiar deve incluir icterícia recorrente na família e/ou o diagnóstico de doenças congênitas. A história de consumo de álcool ou droga recreacional deve, se possível, ser confirmada por um familiar ou amigo.
Alguns fatores de risco de hepatite
Exame físico
Sinais vitais são checados à procura de febre e sinais de toxemia (p. ex., hipotensão, taquicardia).
A aparência geral é notada particularmente quanto a caquexia e letargia.
O exame de cabeça e pescoço engloba a inspeção da esclera e da língua para identificação de icterícia e dos olhos para pesquisa de anéis de Kayser-Fleischer (mais bem visualizados pela lâmpada de fenda). Icterícia discreta é vista mais claramente na esclera e à luz natural; é geralmentedetectável quando a bilirrubina ultrapassa 2 ou 2,5 mg/dL (34 a 43 μmol/L). O hálito deve ser observado (p. ex., hálito hepático, característico na encefalopatia).
O abdome é inspecionado em relação a circulação colateral, ascite e cicatrizes cirúrgicas. O fígado é palpado visando identificar hepatomegalia, massas, nódulos e endurecimento. O baço é palpado em busca de esplenomegalia. O abdome é examinado com vistas a hérnia umbilical, aumento do volume, presença de líquido ascítico, massas, ou dor, bem como sinais de irritação peritoneal. O reto é examinado à procura de sangue.
Homens são examinados em busca de atrofia testicular e ginecomastia.
Membros superiores são examinados à procura de contraturas de Dupuytren.
Exame neurológico contempla não somente o estado mental, mas a existência de asteríxis (flapping).
Examina-se na pele icterícia, eritema palmar, orifícios de perfurações por agulhas, aranhas vasculares, escoriações, xantomas (compatíveis com colangite biliar primária), escassez de pelos axilares e pubianos, hiperpigmentação, equimoses, petéquias e púrpura.
Sinais de alerta
Interpretação dos achados
A gravidade da doença é indicada basicamente pelo grau (se houver) de disfunção hepática. Colangite ascendente é preocupante, pois demanda tratamento emergencial.
Disfunção hepática grave é indicada pela presença de encefalopatia (p. ex., estado mental, flapping) ou coagulopatia (p. ex., sangramento fácil, púrpura, fezes escurecidas ou sanguinolentas), particularmente em pacientes com sinais de hipertensão portal (p. ex., abdome com circulação colateral, ascite, esplenomegalia). Sangramento digestiva alta maciça sugere a presença de varizes pela hipertensão portal (e possivelmente coagulopatia).
Colangite ascendente é sugerida pela presença de febre e dor importante e persistente em hipocôndrio direito; pancreatite aguda com obstrução biliar (p. ex., pela presença de cálculo em ducto hepático comum ou pseudocisto) pode se manifestar de forma semelhante.
Causa da icterícia pode ser sugerida pelos seguintes dados:
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Icterícia aguda em jovens saudáveis sugere hepatite aguda viral, particularmente se houver história de um quadro prodrômico, fatores de risco, ou ambos; entretanto, superdose de paracetamol também é uma possível causa.
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É provável que icterícia aguda após exposição a toxinas hepatotóxicas em indivíduos previamente saudáveis ocorra por causa dessa substância.
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História longa de abuso de álcool sugere doença hepática alcoólica, mormente na presença de estigmas de hepatopatia ao exame físico.
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História pessoal ou familiar de icterícia recorrente sem outros achados sugere doença hereditária, possivelmente síndrome de Gilbert.
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Icterícia de instalação gradual, acompanhada de prurido, perda ponderal e acolia fecal sugere colestase intra ou extra-hepática.
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Icterícia sem dor em idosos, acompanhada de perda ponderal e massa palpável, mas mínimo prurido sugere obstrução biliar por câncer.
Outros achados podem ser igualmente úteis ( Achados sugestivos da causa de icterícia).
Achados sugestivos da causa de icterícia
Achados |
Possíveis causas |
Fatores de risco |
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Abuso alcoólico |
Doença hepática alcoólica, incluindo hepatite alcoólica e cirrose |
Câncer gastrintestinal |
Obstrução biliar extra-hepática |
Estado de hipercoagulabilidade |
Trombose da veia hepática (síndrome de Budd-Chiari) |
Doença intestinal inflamatória |
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Gestação |
Colestase intra-hepática, esteato-hepatite (esteatose aguda da gestação) |
Colecistectomia prévia |
Estenose biliar Cálculo retido ou recorrente no ducto comum |
Cirurgia recente |
Hepatite isquêmica Colestase intra-hepática pós-operatória benigna Cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea de longa duração |
Sintomas |
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Dor em cólica no hipocôndrio direito, ombro direito ou subescapular (no momento ou no passado) |
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Dor constante no hipocôndrio direito |
Hepatite aguda alcoólica ou viral, colangite aguda |
Colúria |
Hiperbilirrubinemia conjugada |
Dor e/ou edema articular |
Hepatite (autoimune ou viral) |
Náuseas ou vômitos precedendo a icterícia |
Hepatite aguda Obstrução de hepatocolédoco por cálculo (particularmente se acompanhado de dor abdominal ou calafrios) |
Prurido e acolia fecal |
Colestase intra ou extra-hepática, possivelmente grave se tornar as fezes acólicas |
Pródromos virais (p. ex., febre, mal-estar, mialgia) |
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Exame físico |
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Circulação colateral abdominal, ascite e esplenomegalia |
Hipertensão portal (p. ex., consequente a cirrose) |
Caquexia em paciente com hepatomegalia |
Metástases (mais comum) Cirrose (mais raro) |
Linfadenopatia difusa em paciente com icterícia aguda |
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Linfadenopatia difusa em paciente com icterícia crônica |
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Contratura de Dupuytren, eritema palmar, redução de pelos pubianos e axilares, aranhas vasculares |
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Ginecomastia e atrofia testicular |
Doença hepática alcoólica, uso de esteroides anabolizantes |
Hiperpigmentação |
Hemocromatose, colangite biliar primária |
Anéis de Kayser-Fleischer |
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Marcas de agulha |
Hepatites B e C |
Hematoma em resolução |
Extravasamento de sangue pelos tecidos |
Xantomas |
Exames
São realizados os seguintes:
Exames de sangue incluem medida das bilirrubinas direta e indireta bem como enzimas hepatocelulares (aminotransferases) e canaliculares (fosfatase alcalina e gama-glutamiltransferase) em todos os pacientes. Os resultados auxiliam a diferenciação entre colestase e disfunção hepatocelular (importante, pois geralmente portadores de colestase requerem exame de imagem):
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Disfunção hepatocelular: grande elevação das aminotransferases (> 500 U/L) e elevação moderada de fosfatase alcalina (< 3 vezes o normal)
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Colestase: elevação moderada das aminotransferases (< 200 U/L) e importante elevação da fosfatase alcalina (> 3 vezes o normal)
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Hiperbilirrubinemia sem disfunção hepatocelular: discreta hiperbilirrubinemia leve (p. ex., < 3,5 mg/dL [< 59 μmol/L]) com aminotransferases e fosfatase alcalina normais.
Além disso, pacientes com disfunção hepatocelular ou colestase apresentam urina escura decorrente de bilirrubinuria porque a bilirrubina conjugada é excretada pela urina; a bilirrubina não conjugada não é. O fracionamento das bilirrubinas também permite diferenciar as formas de conjugada e não conjugada. Se os níveis das enzimas aminotransferase e fosfatase alcalina são normais, a fração de bilirrubina pode ajudar a sugerir causas, como a síndrome de Gilbert ou hemólise (não conjugada) versus síndrome de Dubin-Johnson ou síndrome de Rotor (conjugada).
Outros exames são indicados com base na suspeita clínica e nos resultados dos exames iniciais, tais como:
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Sinais de insuficiência hepática (p. ex., encefalopatia, ascite, equimoses) ou sangramento digestório: provas de coagulação (TP/TTP)
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Fatores de risco de hepatite ( Alguns fatores de risco de hepatite) ou um mecanismo hepatocelular sugerido pelos resultados do exame de sangue: hepatite viral e exames sorológicos autoimunes
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Febre, dor abdominal e sensibilidade: hemograma completo e, se o paciente parecer enfermo, hemoculturas.
Exame de imagem é indicado se a dor sugere obstrução extra-hepática ou colangite, ou se os exames laboratoriais sugerem colestase.
Ultrassonografia abdominal é o primeiro exame de imagem a ser realizado.
Ultrassonografia abdominal normalmente é feita primeiro; tipicamente, ela é bastante precisa para detectar obstrução extra-hepática. TC e RM são alternativas. Ultrassonografia geralmente é melhor para litíases; e TC, para lesões pancreáticas. Todos esses exames podem detectar anormalidades nas vias biliares ou lesões hepáticas focais, mas têm baixa acurácia para detecção de lesões difusas, tais como as hepatites e a cirrose.
Se a ultrassonografia detectar colestase extra-hepática, pode ser necessária a realização de exames adicionais para determinar a causa; em geral, colangiopancreatografia por ressonância magnética (CPRM), ultrassonografia endoscópica (USE) ou por via endoscópica (CPE) são utilizadas. CPE é mais invasiva, mas permite o tratamento de algumas lesões obstrutivas (p. ex., remoção de cálculos, colocação de stents em estreitamentos).
Biópsia hepática não é frequentemente indicada, mas pode auxiliar no diagnóstico de certas doenças (p. ex., doenças causadoras de colestase intra-hepática, em alguns tipos de hepatite e também algumas doenças infiltrativas, síndrome de Dubin-Johnson, hemocromatose e doença de Wilson). Biópsia pode também ser de algum auxílio quando o aumento de enzimas permanecer inexplicado pelos demais testes.
A laparoscopia (peritonioscopia) permite avaliação direta do fígado e da vesícula biliar sem o trauma da cirurgia aberta (laparotomia). Assim, ocasionalmente, utiliza-se laparoscopia para diagnosticar icterícia colestática não explicada e, bem mais raramente, a laparotomia exploradora diagnóstica.
Tratamento
A causa e quaisques complicações são tratadas. A icterícia propriamente dita não requer tratamento em adultos (diferentemente em neonatos — Distúrbios metabólicos, eletrolíticos e tóxicos em recém-nascidos). O prurido, se incomodar, melhora com a administração de colestiramina, via oral, 2 a 8 g bid. Entretanto, a colestiramina é ineficaz em casos de obstrução total dos canais biliares.
Fundamentos de geriatria
Os sintomas podem ser leves ou mesmo não percebidos em idosos; p. ex., a dor pode ser leve ou ausente na hepatite viral aguda. Perturbações do ciclo do sono ou confusão mental leve resultantes de encefalopatia portossistêmica podem erroneamente ser interpretadas como demência.
Pontos-chave
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Hepatite viral aguda suspeita em pacientes, especialmente pacientes jovens e saudáveis, que têm icterícia aguda, particularmente com um pródromo viral.
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Obstrução biliar suspeita devido a câncer em pacientes idosos com icterícia indolor, perda ponderal, massa abdominal e prurido mínimo.
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Disfunção hepatocelular suspeita se os níveis de aminotransferase são > 500 U/L e a elevação de fosfatase alcalina é < 3 vezes o normal.
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Suspeitar de colestase se os níveis de aminotransferase são < 200 U/L e a elevação de fosfatase alcalina é > 3 vezes o normal.
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A disfunção hepática é significativa se o estado mental está alterado e coagulopatia está presente.