A obstipação é responsável por até 5% das consultas pediátricas. É definida como demora ou dificuldade de defecação.
A frequência e consistência das fezes consideradas normais variam de acordo com a idade e dieta das crianças; há também uma variação considerável entre uma criança e outra.
Na maior parte (90%) dos recém-nascidos normais há passagem de mecônio nas primeiras 24 h de vida. Durante a primeira semana de vida, os lactentes têm em média 4 a 8 evacuações/dia; lactentes amamentados geralmente passam mais fezes do que aqueles alimentados com leite em pó. Durante os primeiros meses de vida, os lactentes amamentados têm em média 3 evacuações/dia, contra cerca de 2 evacuações/dia de lactentes alimentados com leite em pó. Aos 2 anos de idade, a quantidade de evacuações diminuiu ligeiramente para < 2/dia. Após os 4 anos, é um pouco > 1/dia.
Em geral, sinais de esforço (p. ex., contorção) em um lactente jovem não significam constipação. O lactente desenvolve gradualmente a musculatura para ajudar a evacuação.
Etiologia
São 2 os tipos principais de obstipação na criança:
Orgânica
As causas orgânicas da obstipação envolvem disfunções estruturais específicas, neurológicas, tóxico/metabólicas ou intestinais. São raras, mas é importante reconhecê-las ( Causas orgânicas de obstipação em lactentes e crianças).
A causa orgânica mais comum é
Outras causas orgânicas que podem se manifestar durante ou após o período neonatal incluem
-
Malformações anorretais
-
Disfunções metabólicas (p. ex., hipotireoidismo, hipercalcemia, hiperpotassemia)
-
Anormalidades da medula espinal
Funcional
A obstipação funcional é a passagem dificultosa das fezes por razões que não causas orgânicas.
As crianças são propensas a desenvolver constipação funcional durante 3 períodos:
Cada uma dessas etapas tem o potencial de converter a defecação em uma experiência desagradável.
As crianças podem que adiar os movimentos intestinais porque a passagem das fezes durante a defecação pode ser desconfortável ou porque elas não querem interromper as brincadeiras. Para evitar o peristaltismo intestinal, as crianças contraem o músculo esfincteriano, empurrando as fezes acima da ampola retal. A repetição desse comportamento alonga o reto para acomodar o bolo fecal. O estímulo para a evacuação diminui e as fezes tornam-se mais duras, levando a um círculo vicioso de evacuação dolorosa e piora da obstipação. Ocasionalmente, fezes amolecidas escapam ao redor das fezes endurecidas, causando incontinência fecal (encoprese).
Nas crianças maiores, a obstipação é mais frequentemente causada por uma dieta com fibras insuficientes e rica em produtos de laticínios, o que pode provocar a eliminação de fezes endurecidas que provocam desconforto e podem causar fissura anal. As fissuras anais causam dor na passagem das fezes, levando a um círculo vicioso semelhante de evacuação tardia, que resulta em fezes mais endurecidas e passagem mais dolorosa.
Estresse, desejo de controle e abuso sexual também são algumas das causas funcionais de retenção fecal e subsequente obstipação.
Causas orgânicas de obstipação em lactentes e crianças
Causa |
Achados sugestivos |
Abordagem diagnóstica |
Anatômico |
||
Estenose anal |
Atraso da evacuação nas primeiras 24–48 h Evacuação súbita e dolorosa Distensão abdominal Aspecto ou posição anormal do ânus Canal anal contraído ao toque |
Avaliação clínica |
Ânus deslocado anteriormente |
Constipação crônica grave com esforço e dor acentuados durante a passagem das fezes Normalmente, nenhuma resposta ao uso agressivo de emolientes fecais e catárticos Abertura anal não localizada no centro da área pigmentada do períneo |
Cálculo do API* indicando localização anterior, variável com o sexo: |
Distensão abdominal Nenhuma evacuação Aspecto ou posição anormal do ânus ou possivelmente nenhum ânus |
Exame clínico |
|
Disfunções endócrinas e metabólicas |
||
Polidipsia Poliuria Choro excessivo que se acalma com a ingestão de água Perda ponderal Vômitos |
Osmolalidade urinária e plasmática Níveis do ADH Sódio sérico Às vezes, teste de privação de água |
|
Náuseas, vômitos Fraqueza muscular Dor abdominal Anorexia, perda ponderal Polidipsia Poliuria |
Cálcio sérico |
|
Fraqueza muscular Poliuria, desidratação História de crescimento deficiente Possível história de uso de aminoglicosídeos, diúreticos, cisplatina ou anfotericina |
Eletrólitos |
|
Alimentação carente Bradicardia Neonatos com fontanelas amplas e hipotonia Intolerância ao frio, pele seca, fadiga, icterícia prolongada |
Hormônio estimulante da tireoide (TSH) Tiroxina (T4) |
|
Anomalias da medula espinal |
||
Lesão na coluna vertebral grosseiramente visível ao nascimento Diminuição dos reflexos ou tônus muscular dos membros inferiores Tonicidade anal ausente |
Radiografias simples da coluna lombossacra RM da coluna |
|
Tufo de pelos sacral ou concavidade sacral |
RM da coluna |
|
Medula presa |
Alteração da marcha Dor ou fraqueza dos membros inferiores Incontinência urinária Dor lombar |
RM da coluna |
Tumor ou infeccção na coluna |
Dor lombar Dor ou fraqueza dos membros inferiores Diminuição dos reflexos dos membros inferiores Alteração da marcha Incontinência urinária |
RM da coluna |
Disfunções intestinais |
||
Doença celíaca (enteropatia por glúten) |
Início dos sintomas após a introdução de trigo na dieta (geralmente após 4–6 meses de idade) Não ganha peso Dor abdominal recorrente Distensão abdominal Diarreia ou constipação |
Hemograma completo Rastreamento sorológico a procura de doença celíaca (anticorpo antitransglutaminase tissular IgA) Endoscopia para biópsia duodenal |
Intolerância à proteína do leite de vaca (alergia à proteína do leite) |
Vômitos Diarreia ou constipação Hematoquezia Fissuras anais Não ganha peso |
Resolução dos sintomas com a eliminação da proteína do leite de vaca Algumas vezes, endoscopia ou colonoscopia |
Atraso na eliminação do mecônio ou íleo meconial no recém-nascido Possíveis episódios repetidos de obstrução do intestino delgado (equivalente a íleo meconial) em crianças mais velhas Não ganha peso Episódios repetidos de pneumonia ou sibilos |
Teste de suor Exame genético |
|
Atraso na eliminação do mecônio Distensão abdominal Canal anal contraído ao toque |
Enema baritado Manometria anorretal e biópsia retal para confirmação |
|
Dor abdominal crônica recorrente Frequentemente, alternando entre obstipação e diarreia Sensação de evacuação incompleta Eliminação de muco Sem anorexia ou perda ponderal |
Avaliação clínica |
|
Pseudo-obstrução intestinal |
Náuseas, vômitos Dor e distensão abdominal |
Radiografia do abdome Tempo de trânsito colônico Manometria antroduodenal |
Tumor intestinal |
Perda ponderal Sudorese noturna Febre Dor e/ou distensão abdominal Massa abdominal palpável Obstrução intestinal |
RM |
Paralisia cerebral e outros deficits neurológicos graves |
Na maioria das crianças com paralisia cerebral, que provoca hipotonia intestinal e paralisia motora Alimentação por sonda com fórmulas pobres em fibra |
Avaliação clínica |
Efeitos adversos de fármacos |
||
Uso de anticolinérgicos, antidepressivos, quimioterápicos ou opioides |
História sugestiva |
Avaliação clínica |
Toxinas |
||
Manifestações de início recente de sucção fraca, dificuldades para se alimentar, anorexia, salivação excessiva Choro fraco Irritabilidade Ptose Hipotonia e fraqueza descendentes ou globais Possível história de ingestão de mel antes dos 12 meses |
Teste para toxina botulínica fecal |
|
Geralmente assintomática Possíveis dores abdominais intermitentes, vômitos esporádicos, fadiga e irritabilidade Perda dos marcos do desenvolvimento |
Níveis de chumbo no sangue |
|
*API (índice da posição anal) calculado por: |
||
DP = desvio padrão. |
Avaliação
A avaliação deve focar a diferenciação entre a causa funcional e a orgânica.
História
História da doença atual no neonato deve determinar se houve eliminação do mecônio e quando isso aconteceu. Após o período neonatal, deve-se anotar a duração da obstipação, a frequência e a consistência das fezes e o momento dos sintomas — se o início coincidiu com um evento específico, como a introdução de certos alimentos ou algum desencadeante (p. ex., introdução de hábitos de higiene). Sintomas associados importantes incluem roupas sujas (incontinência fecal), desconforto durante a evacuação e sangue nas fezes. Anotar ainda a composição da dieta, especialmente a quantidade de líquidos e fibras.
Revisão dos sistemas deve focar sintomas que possam sugerir causas orgânicas, como novo início de sucção insatisfatória, hipotonia, ingestão de mel antes dos 12 meses de idade (botulismo infantil), intolerância ao frio, pele seca, fadiga, hipotonia, hiperbilirrubinemia neonatal prolongada, frequência urinária, sede excessiva, (endocrinopatias), alteração da marcha, dor ou fraqueza nos membros inferiores, incontinência urinária (alterações da medula espinal), sudorese noturna, febre, perda ponderal (câncer), vômitos, dor abdominal, deficiência do crescimento, diarreia intermitente e obstipação (disfunções intestinais).
A história clínica deve indagar sobre disfunções conhecidas que possam causar obstipação, como a fibrose cística e a doença celíaca. A exposição a fármacos constipáticos ou poeira de tintas à base de chumbo deve ser observada. Os médicos devem indagar sobre exposição a fármacos obstipantes e pó de tinta com chumbo, eliminação de mecônio nas primeiras 24 ou 48 h de vida, episódios anteriores de obstipação e história familiar.
Exame físico
Em geral, começa com avaliação do nível de conforto e aparência geral (incluindo condições da pele e dos cabelos). Peso e altura devem ser avaliados e marcados em curvas de crescimento.
O exame deve focalizar abdome, ânus e exame neurológico.
Avaliar abdome distendido, fazer ausculta de ruídos intestinais, verificar existência de massa abdominal e dor à palpação. Inspeção anal para verificar fissura (com os devidos cuidados para não forçar e provocar fissura). O exame de toque retal deve ser feito delicadamente para verificar a consistência fecal e obter uma amostra para testar sangue oculto nas fezes. O exame retal deve observar a rigidez da abertura retal e a presença ou ausência de fezes na ampola retal. O exame inclui a verificação da disposição do ânus e a existência de quaisquer tufos de pelos ou depressão na região sacral.
O exame neurológico nos lactentes deve focalizar tônus e força muscular. Nas crianças maiores, o foco é dirigido para marcha, reflexos dos tendões e sinais de fraqueza nos membros inferiores.
Sinais de alerta
Interpretação dos achados
Um achado primário que sugere causa orgânica nos neonatos é a obstipação desde o nascimento; nos que tiveram movimentos peristálticos normais, é improvável que tenham disfunção estrutural significativa.
Nas crianças maiores, as pistas para causa orgânica incluem sintomas constitucionais (particularmente perda ponderal, febre ou vômitos), deficit de crescimento (percentil decrescente na curva de crescimento), aspecto enfermo e qualquer anormalidade observada durante o exame físico ( Causas orgânicas de obstipação em lactentes e crianças). Uma criança com boa aparência, sem outras queixas além da obstipação, que não está tomando fármacos obstipantes e com exame físico normal, provavelmente apresenta alteração funcional.
Na criança normal, o reto distendido contendo fezes ou com fissura anal é compatível com obstipação funcional. A obstipação pode ser atribuída ao uso de fármaco obstipante ou a uma alteração dietética relacionada a esse fármaco ou alimento. Alimentos famosos por serem obstipantes incluem lacticínios (p. ex., leite, queijo, iogurte), farinha e alimentos conservados que não contêm fibras. Pensar em doença celíaca se a obstipação começou com a introdução do trigo na dieta. História de um novo estresse (p. ex., um novo irmão) ou outras causas potenciais de comportamento de retenção de fezes, com achados físicos normais, confirmam etiologia funcional.
Exames
Pacientes com história compatível com obstipação funcional não precisam se submeter aos exames, a não ser que não haja resposta aos tratamentos convencionais da obstipação. Realizar radiografia abdominal se os pacientes não responderem ao tratamento ou se houver suspeita de processo orgânico. Os exames para causas orgânicas devem se basear nos dados de história e exame físico ( Causas orgânicas de obstipação em lactentes e crianças):
-
Enema baritado, manometria retal e biópsia (doença de Hirschsprung)
-
Radiografias simples da coluna lombossacra; RM considerada (medula espinal presa ou tumor)
-
Hormônio tireoide-estimulante e tiroxina (hipotireoidismo)
-
Nível sanguíneo de chumbo (envenenamento por chumbo)
-
Teste para toxina botulínica nas fezes (botulismo infantil)
-
Prova do suor e análise genética (fibrose cística)
-
Cálcio e outros eletrólitos (alterações metabólicas)
-
Rastreamento sorológico geralmente a procura de anticorpos antitransglutaminase tissular IgA (doença celíaca)
Tratamento
As causas orgânicas específicas da obstipação devem ser tratadas.
A obstipação funcional, inicialmente, deve ser, de preferência, tratada com
Mudanças na dieta dos lactentes incluem o acréscimo de sucos de ameixa; para lactentes e crianças maiores, aumentar frutas e vegetais e outras fontes de fibras, ingestão de água e diminuição de alimentos obstipantes (p. ex., leite e queijo).
Mudanças no comportamento, como encorajar as crianças maiores, já com treinamento de higiene, a uma rotina de evacuação após as refeições e reforçar um roteiro para encorajá-las. Para as crianças ainda em processo de treinamento da higiene, às vezes vale a pena dar um intervalo nesse treinamento até que passe a preocupação com a obstipação.
A obstipação persistente é tratada com agentes que eliminem no intestino a impactação fecal, mantendo uma dieta regular e rotina na evacuação. Para isso, são utilizados agentes orais ou retais. Os agentes orais requerem o consumo de grandes volumes de líquidos. Os agentes retais são sentidos como invasivos e de uso difícil. Ambos os métodos podem ser praticados pelos pais com supervisão médica; entretanto, esse processo de desimpacção às vezes necessita de hospitalização se o procedimento ambulatorial não é bem-sucedido. Em geral, esse procedimento extremo não se faz necessário, mas, se for exigida intervenção, um supositório de glicerina é tipicamente adequado. Para manter o intestino saudável, algumas crianças precisam receber suplementação dietética contendo fibras. É necessário consumir 32 a 64 oz de água/dia para que esses suplementos sejam eficazes ( Tratamento da obstipação).
Tratamento da obstipação
Pontos-chave
-
A obstipação funcional corresponde a cerca de 95% dos casos.
-
As causas orgânicas são raras, mas precisam ser consideradas.
-
O atraso na eliminação do mecônio por > 24 a 48 h após o nascimento levanta a suspeita de disfunções estruturais, especialmente doença de Hirschsprung.
-
A intervenção precoce com mudanças na dieta e no comportamento pode tratar a obstipação funcional com sucesso.