Nefropatia por imunoglobulina A (IgA) é a deposição de imunocomplexos de IgA nos glomérulos, que se manifesta como hematúria, proteinúria e, geralmente, doença renal crônica lentamente progressiva. O diagnóstico baseia-se na urinálise e em biópsia renal. As opções de tratamento incluem inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA), bloqueadores do receptor da angiotensina II (BRAs), corticoides e, às vezes, outros imunossupressores. O prognóstico geralmente é bom.
(Ver também Visão geral da síndrome nefrótica.)
A nefropatia por IgA é uma síndrome nefrítica, uma forma de glomerulonefrite crônica caracterizada pela deposição de imunocomplexos de IgA nos glomérulos. É a forma mais comum de glomerulonefrite em todo o mundo e é mais comum em países asiáticos e certos países europeus do que em países africanos e sul-americanos (1). Ocorre em todas as idades, com um pico de início entre os 20 e 30 anos, e geralmente afeta mais homens do que mulheres, embora a prevalência varie em todo o mundo (2, 3). Um número substancial de pessoas saudáveis possui depósitos de IgA nos rins, mas nem todas as pessoas com depósitos de IgA desenvolvem doença clínica.
A causa é desconhecida, mas evidências sugerem que podem haver vários mecanismos, incluindo:
Produção aumentada de IgA1
Defeito de glicosilação de IgA1 causando aumento da ligação com céluças mesangiais
Depuraçãode IgA1 diminuído
Sistema imunitário mucoso defeituoso
Produção excessiva de citoquinas que estimulam a proliferação de células mesangiais
Observaram-se clusters (grupamentos) familiares, sugerindo fatores genéticos pelo menos em alguns casos.
A função renal inicialmente é normal, mas pode se desenvolver doença renal sintomática. Poucos pacientes têm lesão renal aguda ou crônica, hipertensão grave ou síndrome nefrótica.
Referências gerais
1. Schena FP, Nistor I. Epidemiology of IgA Nephropathy: A Global Perspective. Semin Nephrol 2018;38(5):435-442. doi:10.1016/j.semnephrol.2018.05.013
2. Goto K, Imaizumi T, Hamada R, et al. Renal pathology in adult and paediatric population of Japan: review of the Japan renal biopsy registry database from 2007 to 2017. J Nephrol 2023;36(8):2257-2267. doi:10.1007/s40620-023-01687-9
3. Lee M, Suzuki H, Nihei Y, Matsuzaki K, Suzuki Y. Ethnicity and IgA nephropathy: worldwide differences in epidemiology, timing of diagnosis, clinical manifestations, management and prognosis. Clin Kidney J 2023;16(Suppl 2):ii1-ii8. doi:10.1093/ckj/sfad199
Sinais e sintomas da nefropatia por IgA
As manifestações mais comuns são persistência ou reincidência de hematúria macroscópica ou hematúria microscópica assintomática com proteinúria leve. Dor lombar e febre baixa podem acompanhar episódios agudos. Outros sintomas geralmente não são proeminentes.
A hematúria macroscópica habitualmente inicia-se após 1 a 2 dias de doença mucosa febril (do trato respiratório superior, sinusal, enteral), imitando assim glomerulonefrite pós-infecciosa aguda, exceto pelo início da hematúria, que é mais precoce, coincidindo com ou imediatamente após a doença febril. Quando cursa com alguma doença do trato respiratório superior, é às vezes chamada hematúria sinfaríngica.
A glomerulonefrite rapidamente progressiva é a manifestação inicial em aproximadamente 5% dos pacientes (1).
Referência sobre sinais e sintomas
1. Shimizu A, Takei T, Moriyama T, Itabashi M, Uchida K, Nitta K. Clinical and pathological studies of IgA nephropathy presenting as a rapidly progressive form of glomerulonephritis. Intern Med 2013;52(22):2489-2494. doi:10.2169/internalmedicine.52.0420
Diagnóstico da nefropatia por IgA
Urinálise
Biópsia renal
O diagnóstico é sugerido por qualquer um dos seguintes aspectos:
Hematúria importante, particularmente no período de 2 dias de uma doença mucosa febril ou com dor no flanco
Achados incidentais na urinálise
Ocasionalmente, glomerulonefrite rapidamente progressiva
Quando as manifestações são moderadas ou graves, o diagnóstico é confirmado por biópsia.
A urinálise confirma hematúria microscópica, geralmente, com eritrócitos dismórficos e, às vezes, cilindros hemáticos. Proteinúria leve (< 1 g/dia) é típica e pode ocorrer sem hematúria; a síndrome nefrótica se desenvolve em aproximadamente 10% (1). O nível sérico de creatinina geralmente é normal.
Image provided by Agnes Fogo, MD, and the American Journal of Kidney Diseases' Atlas of Renal Pathology (see www.ajkd.org).
Image provided by Agnes Fogo, MD, and the American Journal of Kidney Diseases' Atlas of Renal Pathology (see www.ajkd.org).
A biópsia renal mostra depósito granular de IgA e complemento (C3) na coloração por imunofluorescência em um mesângio expandido com focos de lesões proliferativas segmentares ou necrosantes. De modo importante, os depósitos de IgA mesangiais são inespecíficos e também podem ocorrer em muitas outras doenças, como vasculite por IgA, cirrose, doença inflamatória intestinal, doença celíaca, psoríase, infecção pelo HIVcâncer de pulmão e diversas doenças reumáticas sistêmicas.
A deposição glomerular de IgA é a característica primária da vasculite por IgA, e pode se diferenciada de nefropatia por IgA com base em amostras de biópsia, levando à hipótese de que a vasculite por IgA pode ser uma forma sistêmica da nefropatia por IgA. Entretanto, a vasculite por IgA é clinicamente distinta da nefropatia por IgA, geralmente manifestando-se com hematuria, exantema purpúrico, artralgias e dor abdominal.
Outros exames imunológicos séricos geralmente são desnecessários. As concentrações de complemento geralmente são normais. A concentração plasmática de IgA pode estar elevada e os complexos IgA-fibronectina circulantes estão presentes; entretanto, esses achados não são úteis para o diagnóstico.
Referência sobre diagnóstico
1. Kim JK, Kim JH, Lee SC, et al. Clinical features and outcomes of IgA nephropathy with nephrotic syndrome. Clin J Am Soc Nephrol 2012;7(3):427-436. doi:10.2215/CJN.04820511
Tratamento da nefropatia por IgA
Em geral, iinibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA), ou bloqueadores dos receptores de angiotensina II (BRAs) para hipertensão, creatinina sérica > 1,2 mg/dL (106,08 micromol/L), ou macroalbuminúria (proteína urinária > 300 mg/dia) e com uma proteína urinária alvo de < 500 mg/dia
Um antagonista duplo dos receptores de endotelina e angiotensina (p. ex., esparsentana) é indicado para pacientes com risco de progressão rápida da doença.
Um inibidor do cotransportador de sódio-glicose 2 (SGLT2) pode ser adicionado para a proteinúria persistente apesar da inibição da angiotensina
Corticoides para doença progressiva, incluindo o aumento da proteinúria, especialmente na faixa nefrótica (≥ 3 g/dia), e o aumento no nível de creatinina sérica.
Corticoides e ciclofosfamida para lesão proliferativa ou glomerulonefrite rapidamente progressiva
Transplante na doença avançada
Pacientes normotensos com função renal intacta (creatinina sérica < 1,2 mg/dL [106,08 micromol/L]) e apenas proteinúria discreta (< 0,5 g/dia) geralmente não são tratados além da inibição da angiotensina (com inibidor da ECA ou BRA) e um inibidor de SGLT2. Pacientes com doença renal mais avançada ou proteinúria e hematúria mais intensas geralmente recebem corticoides, que idealmente devem ser iniciados antes que a doença renal significativa se desenvolva.
Inibidores de angiotensina na nefropatia por IgA
Os inibidores da ECA ou bloqueadores dos receptores da angiotensina II (BRAs) são utilizados com base na premissa de que reduzem a pressão arterial, a proteinúria e a fibrose glomerular. Pacientes com genótipo DD para o gene da ECA podem apresentar maior risco de progressão da doença, mas podem também ter maior probabilidade de resposta aos inibidores da ECA ou bloqueadores dos receptores da angiotensina II (BRAs). Para pacientes com hipertensão, os anti-hipertensivos de escolha são os inibidores da ECA ou bloqueadores dos receptores da angiotensina II (BRAs), mesmo para a doença renal crônica relativamente leve.
Antagonistas duplos dos receptores de endotelina
A esparsentana, um antagonista duplo dos receptores de endotelina, é utilizada no controle da proteinúria em pacientes com nefropatia por IgA que apresentam risco de progressão rápida da doença (definida como uma relação proteína-creatinina urinária de ≥ 1,5). Não deve ser utilizado como tratamento inicial, mas sim é o medicamento de escolha quando um inibidor da ECA ou BRA falha. O inibidor da ECA ou o BRA deve ser interrompido antes de iniciar um antagonista duplo dos receptores de endotelina (1).
Inibidores do cotransportador de sódio-glicose 2
Um Inibidor de SGLT2 também pode ser utilizada para pacientes com proteinúria secundária à nefropatia por IgA que não melhorou com inibidores da ECA ou bloqueadores dos receptores da angiotensina II (BRAs). Em uma análise pré-especificada de um subgrupo de pacientes com nefropatia por IgA, os inibidores de SGLT2 (que melhoram os resultados em pacientes com proteinúria devido à doença renal diabética) reduziram o risco de progressão da doença renal crônica (2).
Corticoides e imunossupressores na nefropatia por IgA
Para pacientes com alto risco de progressão da doença (isto é, proteinúria ≥ 1 g/dia, uma taxa de filtração glomerular estimada [TFGe] de 20 a 120 mL/min por 1,73 m2 após pelo menos 3 meses de terapia de suporte), demonstrou-se que os corticoides diminuem a taxa de progressão para insuficiência renal (3). Regimes de doses mais altas de corticoides estão associados a eventos adversos mais graves (p. ex., infecção que requer hospitalização).
Não há consenso entre os especialistas sobre o esquema ideal de corticoide além de ter pelo menos 6 meses de duração (4).
Em razão do risco de efeitos adversos, os corticoides provavelmente devem ser reservados aos pacientes com qualquer um dos seguintes:
Proteinúria piorando ou persistente (> 1 g/dia), especialmente se no intervalo nefrótico apesar de terapia máxima com um inibidor da ECA ou BRA
Aumento do nível de creatinina sérica
Utilizam-se combinações de corticoides IV e ciclofosfamida e prednisona oral para doenças graves, como nefropatia proliferativa ou em crescente (rapidamente progressiva). Evidências sobre o micofenolato de mofetil são conflitantes; ele não deve ser utilizado como tratamento de primeira linha. Entretanto, nenhuma desses medicamentos evita a reincidência em pacientes transplantados. A terapia imunossupressora também deve ser evitada em pacientes com doença renal fibrótica avançado, que não é reversível.
Outros tratamentos
Embora outras intervenções tenham sido tentadas para reduzir a superprodução de IgA e inibir a proliferação mesangial, dados que apoiam qualquer uma dessas são limitados ou ausentes, e nenhuma pode ser recomendada para o tratamento de rotina. Essas intervenções incluem a eliminação de glúten, produtos lácteos, ovos e carne da dieta; tonsilectomia; e imunoglobulina IV por 3 meses, seguida por imunoglobulina intramuscular por 6 meses. Todos reduzem teoricamente a produção de IgA. Heparina, dipiridamol e estatinas são alguns dos exemplos de inibidores de proliferação mesangial in vitro.
Para pacientes que evoluem para insuficiência renal, o transplante de rim é preferível à diálise por causa da melhora da sobrevida livre de doença a longo prazo. A condição recorre em aproximadamente 30% dos receptores de enxerto (5).
Referências sobre tratamento
1. Rovin BH, Barratt J, Heerspink HJL, et al: Efficacy and safety of sparsentan versus irbesartan in patients with IgA nephropathy (PROTECT): 2-year results from a randomised, active-controlled, phase 3 trial. Lancet 402(10417):2077-2090, 2023. doi:10.1016/S0140-6736(23)02302-4
2. Wheeler DC, Toto RD, Stefánsson BV, et al: A pre-specified analysis of the DAPA-CKD trial demonstrates the effects of dapagliflozin on major adverse kidney events in patients with IgA nephropathy. Kidney Int 100(1):215-224, 2021. doi: 10.1016/j.kint.2021.03.033
3. Lv J, Wong MG, Hladunewich MA, et al: Effect of oral methylprednisolone on decline in kidney function or kidney failure in patients with IgA nephropathy: The TESTING randomized clinical trial. JAMA 327(19):1888-1898, 2022. doi: 10.1001/jama.2022.5368
4. Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) Glomerular Diseases Work Group. KDIGO 2021 Clinical Practice Guideline for the Management of Glomerular Diseases. Kidney Int 100(4S):S1-S276, 2021. doi:10.1016/j.kint.2021.05.021
5. Jäger C, Stampf S, Molyneux K, et al: Recurrence of IgA nephropathy after kidney transplantation: Experience from the Swiss transplant cohort study. BMC Nephrol 23(1):178, 2022. doi: 10.1186/s12882-022-02802-x
Prognóstico para nefropatia por IgA
A nefropatia por IgA tem um curso de doença heterogêneo, mas geralmente progride lentamente; doença renal crônica pode se desenvolver. Pacientes que não são hipertensos na apresentação clínica podem desenvolver hipertensão. A progressão para insuficiência renal é variável, ocorrendo em 5 a 60% dos pacientes após 10 anos (1). Quando a nefropatia por IgA é diagnosticada na infância, o prognóstico geralmente é bom. Entretanto, a hematúria persistente invariavelmente leva à hipertensão, proteinúria e doença renal crônica. Os fatores de risco para deterioração progressiva da função renal incluem os seguintes:
Proteinúria > 1 g/dia
Nível elevado de creatinina
Hipertensão descontrolada
Hematúria microscópica persistente
Alterações fibróticas extensas nos glomérulos ou no interstício
Crescentes na biópsia
Referência sobre prognóstico
1. Barbour SJ, Coppo R, Zhang H, et al. Evaluating a New International Risk-Prediction Tool in IgA Nephropathy [correção publicada em JAMA Intern Med. 2019 Jul 1;179(7):1007. doi: 10.1001/jamainternmed.2019.2030]. JAMA Intern Med 2019;179(7):942-952. doi:10.1001/jamainternmed.2019.0600
Pontos-chave
A nefropatia por imunoglobulina A (IgA) é a causa mais comum de glomerulonefrite em todo o mundo e é comum entre jovens adultos em países asiáticos e europeus.
Considerar o diagnóstico em pacientes com sinais inexplicáveis de glomerulonefrite, particularmente quando ocorre em 2 dias depois de uma doença mucosa febril ou com dor lombar.
Tratar pacientes com creatinina > 1,2 mg/dL (106,08 micromol/L) ou proteinúria > 300 mg/dia com inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA) ou bloqueadores dos receptores de angiotensina II (BRAs), e subsequentemente um inibidor do cotransportador de sódio-glicose 2 (SGLT2) ou um antagonista duplo dos receptores de endotelina e angiotensina (para pacientes com risco de progressão rápida da doença) se a proteinúria persistir.
Reserva de corticoides para pacientes com piora da função renal ou proteinúria (> 1 g/dia) apesar do tratamento com um inibidor da ECA ou BRA mais um inibidor de SGLT2, ou um antagonista duplo do receptor de endotelina angiotensina.
Tratar os pacientes com lesão proliferativa ou glomerulonefrite rapidamente progressiva com corticoides e ciclofosfamida.
