(Ver também Introdução a infecções encefálicas.)
Etiologia
Encefalite costuma ser uma manifestação primária ou complicação secundária (pós-infecciosa) de uma infecção viral.
Infecção viral primária
Os vírus que causam encefalite primária invadem diretamente o encéfalo. Estas infecções podem ser
-
Epidêmicas (p. ex., por arbovírus, echovírus, coxsackievírus ou poliovírus [em alguns países subdesenvolvidos])
-
Esporádicas (p. ex., decorrente de citomegalovírus ou herpes simples, varicela-zóster, coriomeningite linfocítica, vírus da raiva ou da caxumba)
As encefalites por arbovírus transmitidas por mosquitos infectam as pessoas durante a primavera, verão e início do outono, quando o clima é quente (ver tabela Algumas encefalites por). Nos EUA, a incidência varia de 150 a > 4.000 casos por ano, principalmente em crianças. A maioria dos casos ocorre durante epidemias.
Algumas encefalites por arbovírus
Vírus |
Distribuição |
Taxa de mortalidade |
Comentários |
Flórida, Porto Rico, Ilhas Virgens Americanas Comum na África, Índia, Guam, Sudeste Asiático, Nova Guiné, China, México, América Central, Ilhas Reunião e em certas áreas da Europa. |
— |
Deve ser considerado em viajantes norte-americanos com quadro de encefalite após visitar áreas endêmicas Pode causar encefalite grave e mesmo morte, especialmente em lactentes e pessoas > 65 |
|
Vírus da febre por carrapato do Colorado |
Oeste dos EUA e Canadá em áreas localizadas de 1000 a 3000 m acima do nível do mar |
Raramente causa morte |
Causa uma doença febril inespecífica, raramente é complicada por meningite ou encefalite |
Vírus da encefalite japonesa |
Na Ásia e no oeste do Pacífico; incomum nos EUA (principalmente em viajantes que retornam de regiões endêmicas) |
< 1% no total, mas até 30% dos casos graves |
Afeta principalmente crianças Geralmente, leve e autolimitante, mas grave em cerca de 1 em 250 casos Vacina usada em regiões endêmicas e recomendada para indivíduos que viajam para estas regiões |
Vírus de La Crosse (vírus da Califórnia) |
Principalmente no centro-norte dos EUA, mas disseminado geograficamente |
Provavelmente < 1% |
Provavelmente subrreconhecido Responsável pela maioria dos casos de encefalite por arbovírus em crianças |
Vírus da encefalite de St. Louis |
Principalmente nas áreas urbanas do centro e sudeste dos EUA, mas também nos estados ocidentais |
— |
Ocorre em epidemias urbanas periódicas; do contrário, esporádica e rara |
Vírus Powassan |
Principalmente nos estados do nordeste dos EUA e na região dos Grandes Lagos dos EUA Sudeste do Canadá e na Rússia (região sudeste da Sibéria, nordeste de Vladivostok) |
Cerca de 10% |
Embora raro, parece aumentar desde 2007; ocorre no final da primavera até meados do outono, quando os carrapatos estão mais ativos Deve-se considerar em pacientes com encefalite, especialmente aqueles com história de picadas de carrapatos, que passam muito tempo ao ar livre e/ou moram ou viajaram recentemente para uma área endêmica |
Vírus da encefalite transmitida por carrapato |
Norte da Ásia, Rússia e muitas regiões da Europa |
Geralmente, 1 a 2%, mas varia de acordo com o subtipo (0,5 a 35%) |
Ocorre do início da primavera ao final do verão, quando os carrapatos são mais ativos Maior incidência e sintomas mais graves em indivíduos com ≥ 50 anos Deve-se suspeitar em viajantes com doença febril inespecífica que evolui para doença neuroinvasiva 4 semanas após o retorno de uma região endêmica e que foram expostos a carrapatos |
Encefalite equina venezuelana |
Principalmente em regiões da América do Sul e Central; apenas raramente nos EUA (principalmente em viajantes que retornam de regiões endêmicas) |
0 a 1%, principalmente em crianças |
Vacinas disponíveis para equinos; vacina experimental usada em funcionários de laboratório sob risco |
Vírus do Nilo Ocidental |
Em todo os EUA |
Cerca de 9% dos pacientes com envolvimento do sistema nervoso central |
Em 2017, disseminou-se a partir da costa leste, onde apareceu pela primeira vez em 1999, para quase todos os estados do oeste |
Vírus da encefalite equina do leste |
Leste dos EUA; alguns casos nos estados dos Grandes Lagos |
Cerca de 50 a 70% |
Ocorre como pequenas epidemias a cada 10 a 20 anos, principalmente em crianças e pessoas com > 55 anos |
Vírus da encefalite equina do oeste |
— |
— |
Por razões desconhecidas, basicamente desapareceu dos EUA desde 1988. |
Flórida América do Sul, América Central, Ilhas do Caribe, Ilhas do Pacífico, Cabo Verde (uma nação de ilhas na costa noroeste da África), Sudeste da Ásia |
— |
Pode causar doença semelhante à dengue e foi implicado na causa da síndrome de Guillain-Barré, danos cerebrais graves e microcefalia em lactentes das mães infectadas |
Nos EUA, a encefalite esporádica mais comum é causada pelo HSV; centenas a vários milhares de casos ocorrem por ano. A maior parte decorre de infecção por HSV-1, mas o HSV-2 pode ser mais comum em pacientes imunocomprometidos. Encefalite herpética ocorre em qualquer época do ano e tende a afetar pacientes com < 20 ou > 40 anos de idade e muitas vezes é fatal, se não for tratada.
Raiva continua a ser uma causa significativa de encefalite nos países em desenvolvimento e ainda provoca alguns casos de encefalite nos EUA.
A encefalite primária também pode ocorrer como reativação tardia de uma infecção viral latente ou subclínica. Os tipos mais conhecidos são
-
Encefalite esclerosante subaguda (que ocorre anos após infecção por sarampo que acredita-se representar a reativação da infecção original; agora é rara nos países ocidentais)
-
Leucoencefalopatia multifocal progressiva (causada pela reativação do vírus JC; sobretudo na aids ou em pacientes imunodeprimidos)
Reação imunológica
Pode ocorrer encefalite como complicação imunológica secundária de certas infecções virais ou vacinas. A desmielinização inflamatória do encéfalo e da medula espinhal pode ocorrer 1 a 3 semanas depois (como encefalomielite disseminada aguda); o sistema imunitário ataca um ou mais antígenos do sistema nervoso central, os quais se assemelham a proteínas do agente infeccioso. As causas mais comuns dessa complicação costumavam ser sarampo, rubéola, varicela, catapora e caxumba (todas atualmente raras graças à vacinação disseminada de crianças); vacina contra varíola e as vacinas com vírus vivos (p. ex., as antigas vacinas antirrábicas preparadas a partir de cérebro de ovelha ou cabra). Nos EUA, a maioria dos casos atuais resulta dos vírus influenza A ou B, enterovírus, vírus Epstein-Barr, vírus das hepatites A ou hepatites B ou de HIV. A encefalite autoimune também ocorre em pacientes com câncer e outros transtornos autoimunes.
Encefalopatias causadas por autoanticorpos contra proteínas da membrana neuronal (p. ex., receptores de aspartato N-metil-d [NMDA]) podem mimetizar encefalite viral. Algumas evidências sugerem que a encefalite anti-receptor NMDA é um tipo mais comum de encefalite do que se acreditava anteriormente. Ocasionalmente se desenvolve após encefalite pelo vírus do herpes simples, mesmo quando a encefalite foi tratada com sucesso.
Fisiopatologia
Na encefalite aguda, inflamação e edema ocorrem nas áreas infectadas ao longo de todos os hemisférios cerebrais, tronco encefálico, cerebelo e, ocasionalmente, medula. Hemorragias petequiais podem estar presentes em infecções graves. A invasão viral direta do encéfalo costuma danificar os neurônios, às vezes produzindo corpos de inclusão microscopicamente visíveis. Uma infecção grave, em particular a encefalite por HSV não tratada, pode produzir necrose hemorrágica cerebral.
A encefalomielite disseminada aguda caracteriza-se por áreas multifocais de desmielinização perivenosa e ausência do vírus no encéfalo.
Sinais e sintomas
Os sintomas da encefalite incluem febre, cefaleia e estado mental alterado, frequentemente acompanhados por crises epilépticas e deficits neurológicos focais. Um pródromo gastrointestinal ou respiratório pode preceder esses sintomas. Os sinais meníngeos são geralmente brandos e menos evidentes que outras manifestações.
O estado epiléptico, em particular o convulsivo, ou coma, sugerem inflamação cerebral grave e prognóstico desfavorável.
As crises olfatórias, manifestadas com uma aura de mau cheiro (ovos podres, carne queimada), indicam envolvimento do lobo temporal e sugerem encefalite por HSV.
Diagnóstico
Há suspeita de encefalite em pacientes com alterações inexplicáveis do estado mental. A apresentação clínica e o diagnóstico diferencial podem sugerir certos testes diagnósticos, mas geralmente realizam-se RM e análise do líquor (incluindo PCR para HSV e outros vírus), tipicamente com outros testes (p. ex., testes sorológicos) para identificar o agente viral. Apesar de testes extensivos, a causa de muitos casos das encefalites permanece desconhecida.
RM
A RM com contraste é sensível para detecção precoce de encefalite por HSV, mostrando edema nas áreas orbitofrontal e temporal, habitualmente infectadas por esse vírus. A RM mostra desmielinização em leucoencefalopatia progressiva, podendo mostrar também anormalidades talâmicas e de gânglios basais na encefalite pelo vírus do Nilo ocidental e encefalite equina do leste. A RM também pode excluir lesões que simulam encefalite viral (p. ex., abscesso cerebral, trombose do seio sagital).
A TC é muito menos sensível que a RM para o HSV, mas pode ser útil, pois tem imediata disponibilidade e pode excluir distúrbios que tornam perigosa a punção lombar (p. ex., lesões expansivas, hidrocefalia, edema cerebral).
Exame de líquor
Realiza-se punção lombar (punção espinhal) Quando há encefalite, o líquor caracteriza-se por pleocitose linfocítica, taxa normal de glicose e elevação discreta da taxa de proteína, bem como ausência de patógenos após a coloração de Gram e cultura (similar ao líquor na meningite asséptica). Pleocitose pode ser polimorfonuclear em infecções graves. As alterações liquóricas podem não ocorrer até 8 a 24 h após o início dos sintomas. A necrose hemorrágica pode promover a introdução de muitos eritrócitos no líquor e elevar o nível de proteínas. Os níveis de glicose no líquor podem ser baixos quando a causa é o vírus varicela-zóster ou vírus da coriomeningite linfocítica.
PCR do líquor é o teste diagnóstico de escolha para HSV-1, HSV-2, vírus da varicela-zóster, citomegalovírus, vírus do Nilo ocidental, enterovírus e vírus JC. PCR para HSV no líquor é especialmente sensível e específica. Mas os resultados podem não estar disponíveis rapidamente e, apesar dos avanços tecnológicos, podem ainda ocorrer resultados falso-positivos e falso-negativos por causa de várias condições; nem todas são falhas técnicas (p. ex., punção traumática do líquor com presença de sangue pode inibir a etapa de amplificação da PCR). Resultados falso-negativos podem ocorrer no início da encefalite por HSV-1; nesses casos, o teste deve ser repetido em 48 a 72 h. Uma nova técnica, o sequenciamento de nova geração está se tornando mais amplamente disponível e pode identificar ácidos nucleicos dos agentes que, de outra maneira, escapam à detecção.
As culturas virais possibilitam a replicação de enterovírus, mas não da maioria dos outros vírus. Por essa razão, culturas virais do líquor são raramente usadas no diagnóstico.
Os títulos de IgM geralmente são úteis para diagnosticar infecção aguda, principalmente na encefalite do Nilo ocidental, para a qual são mais confiáveis do que a PCR. Títulos do líquor para IgG e IgM podem ser mais sensíveis que PCR para encefalite pelo vírus da varicela-zóster. Testes sorológicos pareados de líquor e sangue na fase aguda e de convalescença devem ser realizados após algumas semanas; estes podem detectar aumento nos títulos de vírus específicos para determinadas infecções virais.
Biópsia encefálica
Prognóstico
Tratamento
O tratamento de suporte da encefalite é feito pelo tratamento da febre, desidratação, distúrbios eletrolíticos e convulsões. Deve ser mantida a euvolemia.
Como a identificação rápida do vírus do HSV ou varicela-zóster por PCR é difícil, o tratamento não deve ser postergado aguardando confirmação dos testes. Até que encefalite por HSV ou varicela por vírus-zóster sejam excluídas, administram-se prontamente 10 mg/kg de aciclovir, IV a cada 8 h, por 14 dias ou até que a infecção por esses vírus seja excluída. O aciclovir é relativamente atóxico, mas pode causar disfunções hepáticas, supressão da medula óssea e insuficiência renal transitória. A administração IV lenta de aciclovir por 1 hora com hidratação adequada ajuda a prevenir a nefrotoxicidade. Pode-se tratar a encefalite por citomegalovírus com ganciclovir e/ou outros antivirais.
Como uma infecção bacteriana do sistema nervoso central é muitas vezes difícil de excluir quando os pacientes que parecem gravemente enfermos se apresentam, antibióticos empíricos são frequentemente administrados até a meningite bacteriana ser excluída.
Se a encefalite ocorrer por causa de uma reação imunológica [p. ex., encefalomielite disseminada aguda (encefalomielite pós-infecção)], deve-se iniciar o tratamento imediatamente; pode incluir corticoides (prednisona ou metilprednisolona) e plasmaférese ou imunoglobulina IV.
Pontos-chave
-
Os vírus que causam infecções epidêmicas ou esporádicas podem invadir e infectar o parênquima cerebral (causando encefalite) e/ou desencadear desmielinização inflamatória pós-infecciosa (encefalomielite disseminada aguda).
-
A encefalite causa febre, cefaleia e estado mental alterado, com frequência acompanhado por crises epilépticas e deficits neurológicos focais.
-
Fazer RM com contraste e exame do líquor.
-
Até que encefalite por HSV e varicela por vírus-zóster sejam excluídas, tratar prontamente com aciclovir e normalmente continuar por 14 dias ou até a infecção por esses vírus ser excluída.
-
Tratar a encefalite por causa de reação imunológica com corticoides e plasmaférese ou imunoglobulina IV.