A hematúria é a presença de eritrócitos na urina, especificamente > 3 hemácias por campo de grande aumento no exame do sedimento urinário. A urina pode ser vermelha, hemática ou na cor marrom escura (hematúria macroscópica com oxidação do sangue retido na bexiga) ou visivelmente descolorida (hematúria microscópica). Hematúria isolada corresponde a hemácias na urina sem outras alterações urinárias (p. ex., proteinúria, cilindros).
A urina vermelha nem sempre é decorrente de presença de hemácias. A cor vermelha ou vermelho-amarronzada pode resultar de:
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Hemoglobina ou mioglobulina na urina
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Porfiria (maioria dos tipos)
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Alimentos (p. ex., beterraba; ruibarbo; algumas vezes, corantes alimentares)
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Fármacos (mais frequentemente, fenazopiridina, mas, algumas vezes, cáscara, difenil-hidantoína, metildopa, fenacetina, fenindiona, fenolftaleína, fenotiazina e senna)
Fisiopatologia
Etiologia
A maioria dos casos envolve hematúria microscópica transitória autolimitada e idiopática. A hematúria microscópica transitória é particularmente comum em crianças, presente em até 5% das amostras de urina. Existem inúmeras causas específicas (ver tabela Algumas causas específicas de hematuria).
As causas específicas mais comuns diferem de acordo com a idade, mas, no geral, as mais comuns são
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Cálculos urinários (em adultos)
Exercícios vigorosos podem causar hematúria transitória. O câncer e a doença da próstata são preocupantes, principalmente em pacientes > 50 anos, apesar de pacientes mais jovens com fatores de risco poderem desenvolver câncer.
Doenças glomerulares podem ser a causa em todas as idades. Doenças glomerulares podem representar uma doença renal primária (adquirida ou hereditária) ou ser secundária a diversas causas, como infecção (p. ex., infecção por estreptococos beta-hemolíticos do grupo A), doenças do tecido conjuntivo e vasculite (p. ex., lúpus eritematoso sistêmico em todas as idades, vasculite associada à imunoglobulina A [púrpura de Henoch-Schönlein ] em crianças) e doenças hematológicas (p. ex., crioglobulinemia mista, doença do soro). Ao redor do mundo, a nefropatia por imunoglobulina A (IgA) é a forma mais comum de glomerulonefrite.
O Schistosoma haematobium, um parasita que causa doença significativa na África (e, em menor extensão, na Índia e partes do Oriente Médio), pode invadir o trato urinário e causar hematúria. A esquistossomose é considerada apenas se a pessoa permaneceu algum tempo em áreas endêmicas. Mycobacterium tuberculosis também pode infectar o trato urinário inferior ou superior e causar hematúria, às vezes, provocando estenose uretral.
Algumas causas específicas comuns de hematúria
Causa |
Achados sugestivos |
Abordagem diagnóstica* |
Infecção |
Sintomas irritativos urinários, com ou sem febre |
Exame de urina e cultura de urina |
Início súbito, geralmente em cólica, dor grave em flanco ou abdome, algumas vezes com vômitos |
TC abdominal sem contraste ou ultrassonografia do abdome |
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Doença glomerular (inúmeras formas) |
Em muitos pacientes, hipertensão, edema ou ambos Possivelmente, urina vermelha ou cor de refrigerante de cola Algumas vezes, infecção anterior, história familiar de doenças renais ou doença do tecido conjuntivo Normalmente, proteinúria |
Exame de urina Exame do sedimento urinário quanto à presença de cilindros hemáticos e hemácias dismórficas Testes sorológicos Biópsia renal |
Principalmente em pacientes > 50 anos ou com fatores de risco (tabagismo, história familiar, exposição a substâncias químicas e fármacos [p. ex., fenacetina, ciclofosfamida]) Algumas vezes, sintomas de esvaziamento com câncer da bexiga Em geral, sintomas sistêmicos na presença de carcinoma renal |
Em todos os pacientes sem outra causa óbvia, cistoscopia e possível biópsia da bexiga; se houver suspeita de câncer de próstata, PSA e possivelmente biópsia da próstata |
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Principalmente em homens > 50 anos Em geral, sintomas obstrutivos urinários Próstata aumentada à palpação |
PSA Medida do volume residual pós-miccional Ultrassonografia da pelve |
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Principalmente em homens > 50 anos Em geral, sintomas urinários irritativos e obstrutivos Próstata aumentada e dolorosa com infecção aguda |
Avaliação clínica Algumas vezes, ultrassonografia transretal ou cistoscopia |
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Dor abdominal ou lombar crônica Rins aumentados |
Ultrassonografia ou TC/RM sem contraste do abdome |
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Necrose ou infarto papilar renal |
Frequentemente em pessoas com doença ou traço falciforme (p. ex., negros, principalmente crianças e adultos jovens, geralmente com doença conhecida) Algumas vezes, uso intenso de analgésicos (nefropatia analgésica) |
Às vezes, preparação de células falciformes e eletroforese Hb |
A hematúria coincide com as menstruações |
Avaliação clínica |
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Trauma (fechado ou penetrante) |
Geralmente, apresenta-se como lesão, ao invés de hematúria |
TC do abdome e da pelve |
Síndrome de dor lombar-hematúria |
Dor lombar Hematúria |
Exame de urina e TC |
Síndrome do quebra-nozes |
Hematúria Dor no testículo esquerdo Varicocele |
Angiografia por TC |
*Todos os pacientes necessitam de exame de urina e avaliação da função renal; os pacientes mais velhos necessitam de exames de imagem dos rins e da pelve. |
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Hb = hemoglobina; PSA = antígeno prostático específico; RBC = eritrócito. |
Avaliação
História
História da doença atual contendo a duração da hematúria e quaisquer episódios prévios. Sintomas obstrutivos urinários (p. ex., esvaziamento incompleto, noctúria, dificuldade em iniciar ou interromper a micção) e sintomas irritativos (p. ex., irritação, urgência, frequência, disúria) devem ser observados. Deve-se perguntar aos pacientes sobre a presença de dor, sua localização e gravidade e se fizeram exercícios vigorosos.
A revisão dos sistemas deve buscar sintomas de possíveis causas, incluindo dor articular e exantema (doenças do tecido conjuntivo). Presença de febre, sudorese noturna ou perda ponderal também devem ser observados.
A história clínica deve incluir questões sobre quaisquer infecções recentes, particularmente faringite, que pode indicar infecção por estreptococo beta-hemolítico do grupo A. Condições conhecidas que causem sangramento urinário (particularmente, cálculos renais, anemia ou traço falciforme, distúrbios glomerulares) devem ser pesquisadas. Além disso, deve-se identificar as condições que predispõem à doença glomerular, como doença do tecido conjuntivo [especialmente lúpus eritematoso sistêmico (LES) e artrite reumatoide artrite reumatoide], endocardite, infecções de shunts, e abscessos abdominais. Os fatores de risco de câncer GU devem ser identificados, incluindo tabagismo (o mais significativo), fármacos (p. ex., ciclofosfamida, fenacetina) e exposição a químicos industriais (p. ex., nitratos, nitrilotriacetato, nitritos, tricloroetileno).
A história familiar deve indicar parentes com doença renal policística conhecida, doença glomerular ou câncer GU. Deve-se perguntar aos pacientes sobre viagens para áreas endêmicas de esquistossomose e fatores de risco de tuberculose devem ser avaliados. A história de fármacos deve verificar o uso de anticoagulantes ou antiplaquetários (embora a própria anticoagulação controlada não cause hematúria) e uso intenso de analgésicos.
Exame físico
Os sinais vitais devem ser revisados quanto à presença de febre e hipertensão.
O coração deve ser auscultado quanto à presença de sopros (sugerindo endocardite).
O abdome deve ser palpado para verificar a presença de massas; os flancos devem ser percutidos para verificar dolorimento sobre os rins. Em homens, deve-se realizar o toque retal para verificar crescimento, nódulos e dolorimento da próstata.
A face e as extremidades devem ser inspecionadas quanto à presença de edema (sugerindo doença glomerular), e a pele deve ser inspecionada quanto à presença de exantema (sugerindo vasculite, lúpus eritematoso sistêmico ou vasculite associada à imunoglobulina A).
Sinais de alerta
Interpretação dos achados
As manifestações clínicas de várias causas se sobrepõem significativamente, sendo necessários exames da urina e do sangue. Dependendo dos resultados, podem ser necessários exames de imagem. Entretanto, alguns achados clínicos fornecem pistas úteis (ver tabela Algumas causas comuns de hematuria).
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Coágulos de sangue na urina virtualmente descartam doença glomerular. Doenças glomerulares, em geral, são acompanhadas de edema, hipertensão ou ambos; os sintomas podem ser precedidos de alguma infecção (particularmente, infecção por estreptococo beta-hemolítico do grupo A em crianças).
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Cálculos geralmente manifestam-se por dor em cólica excruciante. Dor mais contínua e menos grave pode resultar de infecção, câncer, doença policística renal, glomerulonefrite e síndrome de dor lombar-hematúria.
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Sintomas irritativos urinários sugerem infecção vesical ou da próstata, mas podem acompanhar certos cânceres (principalmente, da bexiga e da próstata).
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Sintomas obstrutivos urinários geralmente sugerem doença da próstata.
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Massa abdominal sugere doença renal policística ou carcinoma de células renais.
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História familiar de nefrite, anemia ou traço falciforme, ou doença renal policística sugerem estas como causas.
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Viagem à Africa, ao Oriente Médio ou à Índia sugere a possibilidade de esquistossomose.
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Sintomas sistêmicos (p. ex., febre, sudorese noturna, perda ponderal) podem indicar câncer ou infecção subaguda (p. ex., tuberculose) ou doença autoimune (tecido conjuntivo).
Por outro lado, alguns achados comuns (p. ex., aumento da próstata, uso excessivo de anticoagulação), apesar de causas potenciais de hematúria, não devem ser considerados como causas sem avaliação cuidadosa.
Exames
Antes de iniciar os exames, deve-se distinguir hematúria verdadeira de urina vermelha pelo exame de urina. Em mulheres com sangramento vaginal, a amostra deve ser obtida por cateterização, para evitar contaminação por fonte não urinária de sangue. A presença de urina vermelha sem hemácias sugere mioglobinúria ou hemoglobinúria, porfiria ou ingestão de certos alimentos ou fármacos. Geralmente, a presença de hematúria deve ser confirmada testando uma 2ª espécie.
A presença de cilindros, proteínas ou hemácias dismórficas (em formas irregulares, com espículas, dobras e inclusões) indica doença glomerular. Leucócitos ou bactérias sugerem etiologia infecciosa. Entretanto, como o exame de urina mostra predomínio de hemácias em alguns pacientes com cistite, geralmente, realiza-se urocultura. Uma cultura positiva indica tratamento com antibióticos. Caso a hematúria desapareça após o tratamento e não haja outros sintomas, não é necessária avaliação adicional para pacientes < 50 anos de idade, especialmente mulheres.
Pacientes < 35 anos (incluindo crianças) somente com hematúria microscópica sem achados urinários sugestivos de doença glomerular, sem manifestações clínicas que sugerem uma causa, sem fatores de risco de câncer e uma causa benigna identificada (p. ex., infecção, trauma leve) podem ser observados por meio de exame de urina repetida a cada 6 a 12 meses. Se uma causa benigna não é evidente ou a hematúria é persistente, indicam-se exames(1), começando com ultrassonografia ou TC com contraste, às vezes seguida de cistoscopia.
Pacientes < 50 com hematúria franca ou sintomas sistêmicos inexplicáveis requerem ultrassonografia ou TC do abdome e da pelve.
Se os resultados urinários ou clínicos sugerem doença glomerular, deve-se avaliar a função renal medindo nitrogênio ureico sanguíneo, creatinina e eletrólitos no sangue; fazer exame de urina; e determinação periódica da relação proteína/creatinina. A avaliação posterior de doença glomerular pode necessitar de exames sorológicos, biópsia do rim ou ambos.
Todos os pacientes ≥ 35 anos exigem cistoscopia, assim como pacientes < 35 anos com fatores de risco, como, por exemplo, história familiar de câncer ou sintomas sistêmicos (1). Homens≥ 50 anos devem dosar o antígeno prostático específico; aqueles com valores elevados devem ser avaliados posteriormente quanto à presença de câncer da próstata.
Referência geral
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American Urological Association (AUA). Diagnóstico, avaliação e acompanhamento da micro-hematúria assintomática (MHA) em adultos (2016).
Tratamento
Pontos-chave
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Deve-se diferenciar urina vermelha da hematúria verdadeira (eritrócitos na urina).
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O exame de urina e o exame do sedimento urinário auxiliam a diferenciação de doença glomerular de causas não glomerulares.
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O risco de doença séria aumenta com a idade e com a duração e o grau da hematúria.
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A cistoscopia e os exames de imagem geralmente são necessários para pacientes > 35 anos ou para pacientes mais jovens com sintomas sistêmicos ou fatores de risco de câncer.