Pancreatite crônica

PorMichael Bartel, MD, PhD, Fox Chase Cancer Center, Temple University
Revisado/Corrigido: mar 2022
Visão Educação para o paciente

A pancreatite crônica é a inflamação pancreática com dano estrutural pancreático permanente, fibrose e estenoses ductais, seguidos por declínio das funções exócrina e endócrina (insuficiência pancreática). Consumir álcool e fumar cigarros são dois dos principais fatores de risco. Dor abdominal é o sintoma predominante na maioria dos pacientes. O diagnóstico costuma ser estabelecido por meio de exames de imagem e exame de função pancreática. O tratamento é direcionado principalmente ao controle da dor e ao tratamento da insuficiência pancreática.

(Ver também Visão geral da pancreatite e Pancreatite aguda.)

A fibrose causada pela inflamação e pela lesão pancreática recorrente é a principal característica da pancreatite crônica, mas precisa ser diferenciada da fibrose causada pelo processo de envelhecimento e da pancreatopatia diabética.

A pancreatite crônica pode causar calcificação do parênquima pancreático, formação de cálculos intraductais ou ambos, bem como atrofia do pâncreas.

Patogênese da pancreatite crônica

A patogênese da pancreatite crônica não é totalmente compreendida. Vários mecanismos foram propostos.

A teoria da obstrução de ducto por cálculos propõe que a doença decorre de obstrução ductal causada pela formação de plugues ricos em proteínas como resultado do desequilíbrio de proteínas e bicarbonatos por razões desconhecidas. Esses plugues podem calcificar e com o tempo formar cálculos dentro dos ductos pancreáticos. Se a obstrução for crônica, a inflamação persistente causa fibrose, distorção ductal pancreática, estenoses e atrofia. Depois de vários anos, fibrose progressiva e atrofia causam a perda das funções exócrina e endócrina.

A hipótese de necrose-fibrose postula que ataques repetidos de pancreatite aguda com necrose são fundamentais para a patogênese da pancreatite crônica. Ao longo dos anos, o processo de cicatrização substitui o tecido necrótico por tecido fibrótico, levando ao desenvolvimento de pancreatite crônica.

Ocorrem hipertrofia da bainha neural e inflamação perineural e podem contribuir para dor crônica.

Etiologia da pancreatite crônica

Nos Estados Unidos, cerca de 50% dos casos de pancreatite crônica resultam de consumo de grandes quantidades de bebidas alcoólicas, e a pancreatite crônica é mais comum entre os homens do que entre as mulheres. Entretanto, somente uma minoria de pessoas com exposição contínua às bebidas alcoólicas evolui com pancreatite crônica, sugerindo a existência de outros cofatores necessários para deflagrar a doença franca. Tabagismo é um fator de risco independente e dependente da dose para o desenvolvimento de pancreatite crônica (1). Tanto o consumo de grandes quantidades de bebidas alcoólicas como o tabagismo aumentam o risco de progressão da doença, e seus riscos são provavelmente cumulativos. Uma grande proporção dos casos de pancreatite crônica é idiopática.

Pancreatite tropical é uma forma idiopática da pancreatite crônica que ocorre em crianças e adultos jovens em regiões tropicais como Índia, Indonésia e Nigéria. A pancreatite tropical é caracterizada por idade precoce de início, grandes cálculos ductais, curso acelerado da doença e maior risco de câncer de pâncreas.

Outras causas menos comuns da pancreatite crônica são os distúrbios genéticos, doenças sistêmicas e obstrução ductal causada por estenose, cálculos ou câncer (ver tabela Causas da pancreatite crônica).

Tabela

Referência sobre etiologia

  1. 1. Yadav D, Gawes RH, Brand RE, et al: Alcohol consumption, cigarette smoking, and the risk of recurrent acute and chronic pancreatitis. Arch Intern Med 169:1035–1045, 2009. doi: 10.1001/archinternmed.2009.125. Clarification and additional information. Arch Intern Med 171(7):710, 2011. doi:10.1001/archinternmed.2011.124

Complicações da pancreatite crônica

Quando as secreções de lipase e protease se reduzem a < 10% do normal, o paciente desenvolve malabsorção caracterizada por esteatorreia, evacuações oleosas ou mesmo com gotículas de óleo que flutuam na água que são difíceis de remover com a descarga. Nos casos graves, desnutrição, perda ponderal e má absorção de vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K) também podem ocorrer.

A intolerância à glicose pode aparecer a qualquer momento, mas o diabetes mellitus (diabetes pancreatogênico ou diabetes tipo 3c) geralmente ocorre em uma fase tardia da pancreatite crônica. Pacientes também têm risco de hipoglicemia porque as células alfa pancreáticas, que produzem o glucagon (um hormônio contrarregulador), são perdidas.

Outras complicações da pancreatite crônica incluem

  • Formação de pseudocistos

  • Obstrução do ducto biliar ou do duodeno

  • Ruptura (desconexão) do ducto pancreático (resultando em ascite ou derrame pleural)

  • Trombose da veia esplênica (pode causar varizes gástricas)

  • Pseudoaneurismas das artérias próximas ao pâncreas ou pseudocisto

Pacientes com pancreatite crônica têm maior risco de adenocarcinoma pancreático e esse risco parece ser ainda maior para pacientes com pancreatite hereditária e tropical.

Sinais e sintomas da pancreatite crônica

Dor abdominal e insuficiência pancreática são as principais manifestações da pancreatite crônica. A dor pode ocorrer durante os estágios iniciais da pancreatite crônica, antes do desenvolvimento de anormalidades estruturais aparentes no pâncreas em exames de imagem. A dor é frequentemente o sintoma dominante na pancreatite crônica e está presente na maioria dos pacientes. A dor geralmente é pós-prandial, localizada na área epigástrica e parcialmente aliviada ao sentar-se ou inclinar-se para frente. Os ataques de dor são inicialmente episódicos, mas depois tendem a se tornar contínuos.

Cerca de 10 a 15% dos pacientes não têm dor e apresentam sintomas de má absorção. As manifestações clínicas da insuficiência pancreática incluem flatulência, distensão abdominal, esteatorreia, desnutrição, perda ponderal e fadiga.

Diagnóstico da pancreatite crônica

  • Exames de imagem

  • Testes da função pancreática

O diagnóstico da pancreatite crônica pode ser difícil porque que os níveis de amilase e lipase geralmente são normais secundários à perda significativa da função pancreática. O diagnóstico baseia-se em avaliação clínica, exames de imagem e testes da função pancreática.

Deve-se avaliar os pacientes com piora inexplicável ou prolongada dos sintomas quanto a câncer de pâncreas, particularmente se a avaliação revelar uma estenose do ducto pancreático. A avaliação pode incluir escovado citológico das estenoses ou medida de marcadores séricos (p. ex., CA 19-9, antígeno carcinoembrionário).

Exames de imagem

Em um paciente com história típica de consumo de grandes quantidades de bebidas alcoólicas e episódios recorrentes de pancreatite aguda, a detecção de calcificação pancreática em uma radiografia simples do abdome pode bastar. Entretanto, essas calcificações costumam ocorrer tardiamente na evolução da doença, sendo visíveis em cerca de 30% dos casos. Também pode-se fazer TC nos pacientes com história de consumo de grandes quantidades de bebidas alcoólicas e nos quais as radiografias simples não são diagnósticas.

Em pacientes sem uma história típica, mas com sintomas sugestivos de pancreatite crônica, tipicamente recomenda-se TC abdominal para excluir câncer de pâncreas como a causa da dor. Pode-se utilizar TC abdominal para detectar calcificações e outras anormalidades pancreáticas (p. ex., pseudocistos ou ductos dilatados), mas a TC ainda pode estar normal no início da doença.

RM associada com colangiopancreatografia por ressonância magnética (CPRM) agora é frequentemente usada para o diagnóstico e pode mostrar massas no pâncreas, bem como fornecer uma melhor visualização das alterações ductais compatíveis com pancreatite crônica. A administração de secretina IV durante a CPRM aumenta a sensibilidade para detectar anormalidades ductais e também permite a avaliação funcional nos pacientes com pancreatite crônica. RM é mais precisa que TC e não expõe os pacientes à radiação.

A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) é invasiva, sendo raramente usada para o diagnóstico da pancreatite crônica. Achados da colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) podem ser normais em pacientes com pancreatite crônica precoce. Deve-se reservar a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) para pacientes que podem exigir intervenção terapêutica.

Ultrassonografia endoscópica é menos invasiva e permite detectar anormalidades sutis no parênquima pancreático e no ducto pancreático. Essa modalidade de imagem tem alto nível de sensibilidade, mas especificidade limitada.

Testes da função pancreática

Os testes da função pancreática mais comuns não detectam insuficiência pancreática exócrina leve a moderada com precisão adequada. Tardiamente na doença, testes da função pancreática exócrina mais consistentemente tornam-se anormais.

Os testes da função pancreática são classificados como

  • Direto: monitorar a secreção real dos produtos exócrinos pancreáticos (bicarbonato e enzimas).

  • Indireto: medir os efeitos secundários da falta de enzimas pancreáticas (p. ex., má absorção de gordura).

Testes diretos da função pancreática são mais úteis em pacientes que apresentam um estágio anterior de pancreatite crônica nos quais os exames de imagem não são diagnósticos. Testes diretos envolvem a infusão IV do hormônio colecistocinina para medir a produção de enzimas digestivas ou a infusão do hormônio secretina para medir a produção de bicarbonato. As secreções duodenais são coletadas usando tubos de coleta gastroduodenais de duplo lúmen ou um endoscópio. Testes diretos são trabalhosos, consomem muito tempo e não foram bem padronizados. Testes diretos da função pancreática foram em grande parte eliminados da prática clínica e só são feitos em alguns centros especializados.

Testes indiretos da função pancreática são menos precisos no diagnóstico dos estágios iniciais da pancreatite crônica. Esses testes envolvem amostras de sangue ou fezes. O teste de tripsinogênio no soro é um exame barato e está disponível em laboratórios comerciais. Níveis muito baixos de tripsinogênio sérico (< 20 ng/mL) são altamente específicos para pancreatite crônica. Um teste de 72 horas para gordura fecal nas fezes em pacientes que seguem uma dieta rica em gordura é diagnóstico de esteatorreia. Esse teste é bastante confiável, mas não pode estabelecer a causa da má absorção. Em outros testes, a concentração fecal de quimiotripsina e elastase fecais pode estar diminuída. Testes indiretos estão amplamente disponíveis, são menos invasivos, baratos e mais fáceis de fazer do que os testes diretos.

Tratamento da pancreatite crônica

  • Controle da dor

  • Suplementação de enzimas pancreáticas

  • Tratamento do diabetes

  • Tratamento de outras complicações

O prognóstico da pancreatite crônica é variável.

Controle da dor

O controle da dor é a tarefa mais desafiadora no tratamento de pacientes com pancreatite crônica. Primeiro, deve-se fazer esforços vigorosos e encaminhamentos apropriados para encorajar a cessação de tabagismo e a abstinência de álcool para pacientes com pancreatite crônica em um esforço para desacelerar a progressão da doença o mais cedo possível. Segundo, deve-se buscar as complicações tratáveis da pancreatite crônica como obstrução duodenal ou biliar que podem causar sintomas similares. Os pacientes devem consumir uma dieta pobre em gordura (< 25 g/dia) para reduzir a secreção das enzimas pancreáticas. Deve-se instruir os pacientes com pancreatite crônica sobre práticas de um estilo de vida saudável, e isso deve ser reforçado a cada visita.

Suplementação com enzimas pancreáticas pode reduzir a dor crônica suprimindo a liberação de colecistocinina do duodeno, reduzindo assim a secreção das enzimas pancreáticas. É mais provável que a terapia com enzimas seja bem-sucedida em pacientes com doença menos avançada, em mulheres e em pacientes com pancreatite crônica idiopática do que naqueles com pancreatite alcoólica. Embora a terapia enzimática seja frequentemente tentada por causa da sua segurança e efeitos adversos mínimos, ela pode não melhorar a dor substancialmente.

Frequentemente, essas medidas não aliviam a dor, exigindo doses aumentadas de opioides, o que aumenta o risco de vício. Fármacos adjuvantes no tratamento da dor, como antidepressivos tricíclicos, gabapentina, pregabalina e inibidores seletivos da recaptação de serotonina, têm sido usados isoladamente ou combinados com opioides para controlar a dor crônica; os resultados são variáveis. O tratamento farmacológico da dor na pancreatite crônica é geralmenteinsatisfatório.

Pode-se usar glicocorticoides para tratar a pancreatite autoimune.

Outras modalidades de tratamento incluem terapia endoscópica, litotripsia, bloqueio nervoso do plexo celíaco e cirurgia.

Terapia endoscópica destina-se a descomprimir um ducto pancreático obstruído por estenoses, cálculos ou ambos e pode proporcionar alívio da dor em pacientes cuidadosamente selecionados com anatomia ductal apropriada. Caso haja estenose significativa da papila ou do segmento distal do ducto pancreático, a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) com esfincterotomia, implante de stent ou dilatação, pode ser eficaz. Pseudocistos podem causar dor crônica. Alguns pseudocistos podem ser drenados por endoscopia.

Litotripsia (litotripsia extracorpórea por ondas de choque ou litotripsia intraductal) geralmente é necessária para tratar cálculos pancreáticos grandes ou impactados.

Bloqueio nervoso orientado por ultrassom percutâneo ou endoscópico do plexo celíaco com um corticoide e anestésico de ação prolongada pode proporcionar alívio da dor a curto prazo em alguns pacientes com pancreatite crônica.

A cirurgia pode ser eficaz para redução da dor. Deve-se reservar as opções cirúrgicas para pacientes que pararam a ingestão alcoólica e podem tratar o diabetes, o qual pode se intensificar pela ressecção pancreática. Uma variedade de opções cirúrgicas envolve ressecção e/ou descompressão. A escolha do procedimento cirúrgico depende da anatomia do ducto pancreático, consideração das complicações locais, história cirúrgica do paciente e experiência local. Por exemplo, se o ducto pancreático principal estiver dilatado > 5 a 8 mm, uma pancreatojejunostomia lateral (procedimento de Puestow) ou modificação Partington-Rochelle do procedimento de Puestow alivia a dor em 70 a 80% dos pacientes. Se o ducto pancreático não estiver dilatado, pode-se realizar uma variação do procedimento de Puestow modificado chamada V-plasty ou procedimento de Hamburg.

Outras procedimentos cirúrgicos são a ressecção parcial como a pancreatectomia distal (para doença extensa na cauda do pâncreas), o procedimento de Whipple (para doença extensa na cabeça do pâncreas), a duodenopancreatectomia com preservação do piloro (semelhante ao procedimento de Whipple) a ressecção da cabeça do pâncreas com preservação do duodeno (procedimento de Beger) ou a pancreatectomia total com autotransplante das ilhotas. No geral, a drenagem cirúrgica é mais eficaz do que as abordagens endoscópicas no alívio da obstrução e dor (1).

Reposição de enzimas pancreáticas

Nos pacientes com insuficiência pancreática exócrina, a má absorção de gorduras é mais grave do que a má absorção de proteínas e carboidratos. Má absorção de gorduras também resulta em um deficit de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K). Utiliza-se a terapia de reposição enzimática pancreática (reposição dos hormônios deficientes para o tratamento da insuficiência pancreática) no tratamento da esteatorreia. Existem várias apresentações disponíveis, e uma dose de até 75.000 a 150.000 unidades da United States Pharmacopeia (25.000 a 50.000 unidades internacionais) de lipase por refeição e metade dessa dose durante lanches é necessária para a absorção apropriada de gorduras. Deve-se iniciar o tratamento nessas doses (baixas) com subsequente titulação baseada na resposta clínica. Deve-se tomar as preparações com as refeições. Deve-se administrar um bloqueador de H2 ou um inibidor da bomba de prótons para pacientes tomando preparações sem revestimento entérico para prevenir a quebra das enzimas pelo ácido.

Respostas clínicas favoráveis incluem ganho de peso, diminuição dos movimentos intestinais, eliminação de gotas de óleo com as fezes, aumento dos níveis de vitaminas hipossolúveis e melhora do bem-estar. Pode-se documentar a resposta clínica mostrando uma diminuição da gordura fecal depois da terapia de reposição enzimática. Nos casos de esteatorreia especialmente grave e refratária a essas medidas, pode-se usar triglicerídeos de cadeia média como a fonte de gordura, porque eles são absorvidos sem as enzimas pancreáticas, e deve-se reduzir outras gorduras dietéticas proporcionalmente. Deve-se fazer a suplementação com vitaminas lipossolúveis A, D e K, incluindo vitamina E, que pode minimizar a inflamação.

Tratamento do diabetes

O paciente deve ser encaminhado a um endocrinologista para tratamento do diabetes. Deve-se administrar insulina com cautela porque a deficiência coexistente da secreção do glucagon pelas células alfa pode resultar em hipoglicemia prolongada e sem oposição, o que é patognomônico do diabetes pancreotogênico (diabetes tipo 3c). Hipoglicemiantes orais raramente ajudam a tratar o diabetes causado por pancreatite crônica.

Referência sobre o tratamento

  1. 1. Yang CJ, Bliss LA, Freedman SD, et al: Surgery for chronic pancreatitis: The role of early surgery in pain management. Pancreas 44(5):819–823, 2015. doi: 10.1097/MPA.0000000000000333

Pontos-chave

  • Crises recorrentes de pancreatite aguda podem causar inflamação crônica persistente, dano ductal e com o tempo fibrose, levando à pancreatite crônica.

  • Os pacientes têm dor abdominal episódica, seguida mais tarde na doença por manifestações de má absorção.

  • O diagnóstico baseia-se na apresentação clínica, exames de imagem e testes da função pancreática.

  • O tratamento da pancreatite crônica é direcionado principalmente ao controle da dor e ao tratamento das complicações, como a insuficiência pancreática.

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