Visão geral da criança maltratada

(abuso infantil; negligência infantil)

PorAlicia R. Pekarsky, MD, State University of New York Upstate Medical University, Upstate Golisano Children's Hospital
Revisado/Corrigido: nov 2022
Visão Educação para o paciente

Os maus-tratos à criança incluem todos os tipos de maus-tratos e negligência de uma criança com menos de 18 anos por um dos pais, cuidador ou outra pessoa em uma função de custódia (p. ex., membro do clero, treinador, professor) que resulta em dano, potencial de dano ou ameaça de danos à criança. Quatro tipos de maus-tratos são genericamente reconhecidos: abuso físico, abuso sexual, abuso emocional (abuso psicológico) e negligência. As causas dos maus-tratos à criança são variadas. O abuso e a negligência estão frequentemente associados a lesões físicas, retardo de crescimento e desenvolvimento e problemas de saúde mental. O diagnóstico baseia-se em história, exame físico e, às vezes, exames laboratoriais e imagiologia diagnóstica. A conduta inclui documentação e tratamento de quaisquer lesões, condições físicas e mentais, condições de saúde, informes obrigatórios para agências governamentais apropriadas e, às vezes, hospitalização e/ou encaminhamento a orfanatos para manter a criança segura.

Em 2020, 3,9 milhões de relatos de supostos maus-tratos contra crianças foram feitos no Child Protective Services (CPS) nos Estados Unidos, envolvendo 7,1 milhões de crianças. Cerca de 2,1 milhões desses relatos foram investigados em detalhes e foram identificadas cerca de 618.000 crianças que sofreram mau-tratos (1). Os índices de maus-tratos foram mais altos entre meninas (8,9 por 1.000 meninas) do que meninos (7,9 por 1.000 meninos). Quanto mais jovem a criança, maior a taxa de vitimização (cerca de 29% tinham 2 anos de idade ou menos) (1).

Cerca de dois terços de todos os relatos ao Child Protective Services foram feitos por profissionais que são obrigados a relatar os maus-tratos (p. ex., educadores, executores da lei, assistentes sociais, profissionais de creches, profissionais médicos ou da saúde mental, pais adotivos).

Dos casos comprovados nos Estados Unidos em 2020, 76,1% envolveram negligência (como negligência médica), 16,5% envolveram abuso físico, 9,4% envolveram abuso sexual e 0,2% envolveram tráfico sexual (1). Muitas crianças foram vítimas de múltiplos tipos de maus-tratos.

Cerca de 1.750 crianças nos Estados Unidos morreram por maus-tratos em 2020, cerca de metade das quais tinham < 1 an de idade. Cerca de 73% dessas crianças foram vítimas de negligência e 43% foram vítimas de violência física, com ou sem outras formas de maus-tratos. Cerca de 80% dos agressores eram pais agindo sozinhos ou com outros indivíduos (1).

Potenciais perpetradores de maus-tratos a crianças são definidos de forma ligeiramente diferente em diferentes estados dos Estados Unidos, mas, em geral, para ser considerado legalmente abuso, as ações devem ser feitas por uma pessoa responsável pelo bem-estar da criança. Portanto, pais e outros parentes, pessoas que vivem na casa da criança que têm responsabilidades ocasionais, professores, motoristas de ônibus, conselheiros etc. podem ser considerados agressores. Pessoas que cometem violência contra crianças com as quais não têm conexão ou responsabilidade (p. ex., como em tiroteios em escolas) são culpadas de agressão, assassinato e assim por diante, mas não cometem abuso infantil.

Além de danos imediatos, a negligência e os maus-tratos aumentam o risco de problemas de longa duração, como problemas de saúde mental e transtornos por abuso de substâncias. Os maus-tratos infantis também estão associados a problemas na idade adulta, como obesidade, doença cardíaca e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) (2).

Referências gerais

  1. 1. US Department of Health & Human Services, Administration for Children and Families, Administration on Children, Youth and Families, Children's Bureau: Child Maltreatment 2020 (2022). Disponível em Children's Bureau web site.

  2. 2. Waehrer GM, Miller TR, Silverio Marques SC, et al: Disease burden of adverse childhood experiences across 14 states. PLoS One 15(1):e0226134, 2020. doi: 10.1371/journal.pone.0226134

Classificação dos maus-tratos infantis

Pode haver coexistência de diferentes formas de maus-tratos, e a sobreposição é considerável. As quatro principais formas são

  • Abuso físico

  • Abuso sexual

  • Abuso emocional

  • Negligência

Além disso, considera-se uma forma de abuso (abuso em um contexto médico) fingir, falsificar ou exagerar intencionalmente os sintomas de saúde em uma criança que resulta em intervenções clínicas potencialmente prejudiciais.

Abuso físico

O abuso físico envolve um cuidador que inflige danos físicos ou que participa de ações que criam alto risco de danos. A agressão por alguém que não é um cuidador ou tem responsabilidade para com a criança (p. ex., um atirador em um tiroteio em massa na escola) não é especificamente um abuso infantil. As formas específicas incluem sacudir, derrubar, bater, espancar, queimar (p. ex., escaldar ou tocar com cigarros).

Recém-nascidos e crianças pequenas são os mais vulneráveis porque os estágios de desenvolvimento pelos quais eles podem passar (p. ex., cólicas, padrões inconsistentes de sono, birras, treino do uso do vaso sanitário) podem frustrar os cuidadores. Essa faixa etária também tem maior risco porque eles não são capazes de denunciar os maus-tratos. As causas mais comuns de abuso são as graves lesões cranianas em lactentes. Em crianças pequenas, lesão abdominal também é comum. Crianças nessas faixas etárias também têm maior risco de lesões cerebrais e da coluna vertebral por causa do tamanho relativo da cabeça em relação ao corpo e porque têm os músculos do pescoço mais fracos.

O risco de abuso físico diminui nos primeiros anos escolares.

Abuso sexual

Qualquer ação com uma criança que vise à satisfação sexual de um adulto ou de uma criança maior (em termos de desenvolvimento físico ou idade), constitui abuso sexual ( see page Transtorno pedofílico). As diretrizes que diferenciam o abuso sexual dessas brincadeiras variam de um estado para outro, mas geralmente uma diferença maior do que 4 anos (de idade cronológica, ou do desenvolvimento mental ou físico) é considerada imprópria.

As formas de abuso sexual incluem

  • Relações sexuais, que consistem em penetração oral, anal ou vaginal

  • Molestamento sexual, que é o contato genital sem relação sexual

  • Formas que não envolvem contato físico pelo agressor incluem expor o órgão genital do agressor, mostrar material sexualmente explícito, enviar mensagens de cunho sexual ou postar de fotos a uma criança, e forçar uma criança a participar de um ato sexual com outra pessoa ou participar da produção de material sexual

O abuso sexual não inclui brincadeiras sexuais, em que as crianças quase na mesma idade e desenvolvimento se olham ou tocam a área genital sem força ou coerção.

Abuso emocional

São danos emocionais provocados por palavras ou ações.

Formas específicas são

  • Repreender uma criança gritando ou berrando

  • Rejeitar uma criança depreciando suas habilidades e realizações

  • Intimidar e aterrorizar com ameaças

  • Explorar ou corromper, incentivando um comportamento desviante ou criminoso

O abuso emocional também pode ocorrer quando palavras ou ações são omitidas ou recusadas, caracterizando, na essência, uma negligência emocional (p. ex., ignorar ou rejeitar uma criança ou isolá-la do convívio com outras crianças ou adultos).

Negligência

É não suprir as necessidades físicas básicas, emocionais, educativas e médicas da criança. A negligência é diferente do abuso e, geralmente, ocorre sem intenção de lesar.

Diferentes tipos de negligência podem ser definidos como

  • A negligência física inclui a falta de oferta adequada de alimento, vestuário, proteção, supervisão e proteção contra danos potenciais.

  • Negligência emocional é a falha na demonstração de afeto, ou amor, ou outro tipo de apoio emocional.

  • A negligência educacional é a falha em não matricular a criança na escola, assegurar a frequência escolar ou uma prática de educar em casa.

  • A negligência médica é a falha em assegurar que a criança receba tratamento adequado ou necessário por lesões ou distúrbios físicos ou mentais.

Mas a falha em fornecer tratamentos preventivos (p. ex., vacinações, exames odontológicos de rotina) geralmente não é considerada negligência.

Considerações especiais

Abuso infantil em um ambiente médico

[Abuso em um ambiente médico (antigamente chamado síndrome de Munchausen por procuração, agora chamado transtorno factício imposto ao outro no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição [DSM-5]) ocorre quando os responsáveis produzem ou falsificam intencionalmente sintomas ou sinais físicos ou psicológicos em uma criança. O responsável pode lesionar a criança com drogas ou outros agentes ou acrescentar sangue ou contaminantes bacterianos a amostras de urina para simular uma doença.

Vítimas desse tipo de maus-tratos infantis passam por avaliações, testes e/ou tratamentos desnecessários e potencialmente prejudiciais, como procedimentos ou cirurgias.

Fatores culturais

Castigo corporal grave (p. ex., chicotear, queimar, escaldar) constitui claramente abuso físico, mas, para graus menores de punição física e emocional, os limites entre o comportamento aceitável socialmente e o abuso variam entre as diferentes culturas. Da mesma maneira, práticas que são aceitas por algumas culturas constituem maus-tratos nos Estados Unidos (p. ex., mutilação genital feminina). Entretanto, certos remédios populares (p. ex., raspagem com moedas, ventosaterapia ou hemospasia, cataplasmas irritantes) podem produzir lesões (p. ex., hematomas, petéquias, queimaduras menores) que podem levantar a preocupação em relação a práticas culturais aceitáveis ou maus-tratos.

Membros de certos grupos religiosos, às vezes, não disponibilizam tratamento para salvar a vida (p. ex., para cetoacidose diabética ou meningite), resultando na morte da criança. Essa falha é normalmente considerada negligência, independentemente das crenças dos pais ou responsáveis. Além disso, nos Estados Unidos, alguns profissionais de saúde se recusam a vacinar seus filhos, citando preocupações de segurança ( see page Hesitação vacinal). Não está claro se essa recusa é uma negligência médica. Entretanto, em face da enfermidade, a recusa do tratamento clinicamente aceito algumas vezes requer investigação adicional e intervenção legal.

Etiologia dos maus-tratos infantis

Abuso

Em geral, o abuso pode ser atribuído a uma quebra do controle dos impulsos dos pais ou responsáveis. Vários fatores podem contribuir.

As características dos pais e os aspectos da personalidade são fatores que podem contribuir. Na infância dos pais pode ter havido falta de afeto e carinho, com desenvolvimento inadequado de autoestima ou maturidade emocional, além de formas de maus-tratos em muitos casos. Os pais podem ver os seus filhos como uma fonte ilimitada e incondicional de afeto e apoio que eles nunca receberam. Como resultado, eles podem ter expectativas irreais do que os filhos podem fornecer, frustram-se facilmente e têm pouco controle dos impulsos e são incapazes de dar o que eles nunca tiveram. O uso de substâncias pode provocar comportamentos impulsivos e descontrolados em relação às crianças. Transtornos de saúde mental dos pais não tratados também aumentam o risco de maus-tratos.

Um pai pode alcançar seu limiar de frustração e praticar as ações abusivas subsequentes com mais facilidade e frequência no caso de crianças com necessidades especiais e/ou comportamentos difíceis (1). A falta desse vínculos emocionais ocorre mais comumente em crianças prematuras ou pacientes separadas dos pais, ou com crianças sem vínculo biológico (p. ex., enteados), o que aumenta o risco de abuso.

O abuso pode ser precipitado por situações de estresse, particularmente quando falta o apoio emocional de pais, amigos, vizinhos ou colegas.

Todos os tipos de abuso, incluindo o abuso sexual, ocorrem em um espectro amplo de grupos socioeconômicos. O estresse socioeconômico (p. ex., estresse financeiro, isolamento social, pais jovens ou solteiros) está associado a um maior risco. O abuso físico, o abuso emocional e a negligência podem estar associados à pobreza e a baixa situação socioeconômica.

Negligência

Em geral, negligência resulta de uma combinação de fatores como dificuldades de criação pelos pais, inabilidade para enfrentar o estresse, falta de estrutura de apoio familiar, circunstâncias de vida sob pressão. A negligência costuma ocorrer em famílias que enfrentam estresses financeiro e ambiental, sobretudo naquelas em que os pais também têm transtornos de saúde mental não tratados (tipicamente depressão, ansiedade, transtorno bipolar ou esquizofrenia), transtorno por uso de substâncias ou capacidade intelectual limitada. A negligência pode ser precipitada pelo abandono de um pai que não é capaz, ou não quer assumir o controle da família.

Referência sobre etiologia

  1. 1. Austin AE, Lesak AM, Shanahan ME: Risk and protective factors for child maltreatment: A review. Curr Epidemiol Rep 7(4):334–342, 2020. doi: 10.1007/s40471-020-00252-3

Sinais e sintomas dos maus-tratos em crianças

Dependem da natureza e duração do abuso ou negligência.

Abuso físico

Lesões cutâneas são os achados mais comuns. Em geral, os achados cutâneos são sutis (p. ex., um pequeno hematoma, petéquias na face e/ou pescoço) (1).

Achados mais graves podem consistir em

  • Marcas de mão ou marcas ovais de dedos, causadas ao dar tapas, agarrar e sacudir

  • Equimoses extensas causadas por açoites com cintos

  • Hematomas arqueados estreitos causados por açoites com fios elétricos

  • Múltiplas queimaduras pequenas arredondadas causadas por cigarros

  • Queimaduras simétricas de escaldamento nos membros inferiores ou superiores causadas por imersão intencional

  • Marcas de mordida

  • Pele espessada ou com cicatrizes nos cantos da boca causada por mordaças

  • Alopecia irregular, com comprimento capilar variado, causada por puxões de cabelo

Fraturas altamente indicativas de violência física consistem em lesões metafisárias clássicas (geralmente causadas por agitação de lactente ou criança pequena), fraturas de arcos costais e fraturas de processos espinhosos. Fraturas mais frequentemente associadas a violência física incluem fraturas cranianas, fraturas de ossos longos e fraturas de arcos costais. Em crianças < 1 ano, cerca de 75% das fraturas são infligidas por outras pessoas.

As lesões do sistema nervoso central causam confusão e anormalidades neurológicas localizadas. A falta de lesões encefálicas visíveis não exclui lesão encefálica traumática, sobretudo em lactentes sujeitos a sacudidas violentas. Lactentes violentamente sacudidos podem entrar em coma ou estado de torpor por lesão cerebral, ainda que faltem sinais visíveis de agressão (exceto pela hemorragia de retina) ou eles podem manisfestar sinais inespecíficos como inquietação e vômito. Traumatismos de órgãos torácicos ou abdominais/pélvicos podem ocorrer sem sinais visíveis.

Crianças mais velhas que sofrem abusos constantes geralmente são medrosas, irritadiças e dormem mal. Elas podem apresentar sintomas de depressão, reações de estresse pós-traumático ou ansiedade. Por vezes, as vítimas de abuso apresentam sintomas semelhantes aos de transtorno de deficit de atenção/hiperatividade (TDAH) e são erroneamente diagnosticadas com esse transtorno. Pode ocorrer comportamento suicida ou violento.

Dicas e conselhos

  • A falta de lesões encefálicas visíveis não exclui lesão encefálica traumática em crianças que sofreram abuso.

Abuso sexual

Na maioria dos casos, a criança não revela espontaneamente o abuso sexual e nem sempre exibe comportamento ou sinais do abuso. Se uma revelação é feita, ela costuma ser adiada, às vezes dias ou até anos. Em alguns casos, podem ocorrer mudanças bruscas e extremas de comportamento. Podem surgir isolamento ou agressividade, fobias e distúrbios do sono. Algumas crianças que sofreram abuso sexual agem sexualmente de modo inapropriado para sua idade.

Os sinais físicos de abuso sexual que envolve penetração podem incluir

  • Dificuldade para andar ou sentar

  • Hematomas ou lacerações em torno dos genitais, ânus ou boca

  • Corrimento, sangramento ou prurido vaginal

Outras manifestações incluem infecção sexualmente transmissível ou gestação. Poucos dias após o abuso, os genitais, o ânus e a boca podem ter aparência normal ou o examinador pode encontrar cicatrizes ou alterações leves.

Abuso emocional

Na infância, o abuso emocional pode enfraquecer o emocional e diminuir o interesse pelo meio ambiente. Ele pode acarretar má evolução ponderal e frequentemente é confundido com retardo mental ou doença física. O atraso no desenvolvimento de habilidades sociais e de linguagem pode ser um sinal de estímulo e interação inadequados dos pais.

A criança vítima de abuso, geralmente, é insegura, ansiosa, frustrada, superficial no relacionamento, passiva e muito envolvida no relacionamento com adultos. Crianças rejeitadas podem ter uma autoestima muito baixa. Crianças aterrorizadas ou ameaçadas podem parecer amedrontadas e retraídas.

Em geral, o efeito emocional sobre as crianças torna-se óbvio na idade escolar, quando surgem dificuldades de se relacionar com professores e colegas. Frequentemente, os efeitos emocionais são valorizados apenas depois que a criança é colocada em outro ambiente ou após os comportamentos aberrantes diminuírem e serem substituídos por comportamentos mais aceitáveis. Crianças que são exploradas podem cometer crimes ou desenvolver transtorno por uso de substâncias.

Negligência

Desnutrição, fadiga, falta de higiene ou falta de vestuário adequado e má evolução ponderal são sinais comuns de fornecimento inadequado de alimento, roupas ou abrigo. As crianças ficam desprotegidas, sujeitas a interrupção do crescimento e morte por causa de inanição ou exposição a temperaturas extremas. A negligência que envolve supervisão inadequada pode resultar em doenças ou lesões evitáveis.

Referência sobre sinais e sintomas

  1. 1. Pierce MC, Kaczor K, Douglas JL, et al: Validation of a clinical decision rule to predict abuse in young children based on bruising characteristics. JAMA Netw Open 4(4):e215832, 2021. doi: 10.1001/jamanetworkopen.2021.5832

Diagnóstico de maus-tratos em crianças

  • Elevado índice de suspeita (p. ex., história que não cruza com os dados de exame físico ou pelos padrões atípicos das lesões)

  • Questionamentos de apoios indeterminados

  • Ocasionalmente exames de imagem e laboratoriais

A avaliação das agressões e deficiências nutricionais é discutida em outras partes deste Manual. O reconhecimento dos maus-tratos como agente causal pode ser muito difícil, sendo preciso um alto índice de suspeita. Por causa de vieses sociais, o abuso é menos frequentemente aventado em crianças que vivem em famílias com ambos os pais e renda familiar média. Mas o abuso infantil pode ocorrer independentemente da composição familiar ou do nível socioeconômico.

Às vezes, as perguntas diretas podem gerar uma resposta. Crianças que sofreram maus-tratos podem descrever os acontecimentos e o agressor, mas algumas crianças, particularmente as que sofreram abuso sexual, podem ser coagidas a manter segredos sob ameaças, ou estão tão traumatizadas que se recusam a falar sobre o abuso (podem até negar o abuso quando especificamente questionadas).

Deve-se obter a história clínica, incluindo história dos eventos das crianças (se elas tiverem maturidade suficiente para fazê-lo) e de seus cuidadores não agressores em um ambiente descontraído. Questões abertas (p. ex., “Conte-me o que aconteceu”); são particularmente importantes nesses casos porque perguntas do tipo sim ou não (p. ex., “Papai fez isso?”, “Ele tocou você aqui?”) podem facilmente delinear uma resposta falsa por parte da criança pequena.

Sempre que possível, o exame deve incluir a observação da interação entre a criança e os responsáveis. A documentação, a história e o exame físico devem ser compreensíveis, cuidadosos, incluindo relatos, citações exatas da história e fotos das lesões.

Frequentemente, no início da avaliação não fica claro se o abuso ocorreu. Nesses casos, requerimento de relatos obrigatórios de suspeita de abuso permitem que autoridades especializadas e agências sociais investiguem; se a avaliação confirmar o abuso, podem ser realizadas intervenções legais e sociais apropriadas.

Abuso físico

(Ver também evaluation guidelines for suspected child physical abuse [2015].)

A história e o exame físico fornecem informações sugestivas dos maus- tratos.

Na história, os aspectos sugestivos de abuso são

  • Relutância ou incapacidade dos pais de fornecer a história de uma lesão importante

  • História inconsistente com as lesões (p. ex., hematomas na parte posterior das pernas atribuídas a uma queda para frente) ou lesões em resolução (p. ex., lesões antigas descritas como recentes)

  • História que varia de acordo com a fonte de informação ou ao longo do tempo (deve-se reconhecer que algumas discrepâncias podem ser atribuídas à maneira como a informação foi documentada pelo profissional de saúde)

  • História de lesão que é incompatível com a fase de desenvolvimento da criança (p. ex., lesões atribuídas a quedas do leito ou de escadas em um lactente muito pequeno que nem mesmo engatinha)

  • Resposta não apropriada dos pais relativa a gravidade da lesão — ou disfarçar preocupações

  • Retardar o cuidado da lesão

Os principais indicadores de abuso ao exame físico são

  • Lesões atípicas

  • Lesões incompatíveis com a história

As agressões oriundas de quedas são tipicamente isoladas, testa, queixo, boca, superfícies de extensão particularmente nos cotovelos, joelhos, antebraço e tíbia. Hematomas nos glúteos e atrás das pernas são raramente resultantes de quedas. Fraturas isoladas de clavícula, tíbia (crianças pequenas), segmento distal do rádio (de Colles) são mais raras e típicas de quedas durante uma brincadeira ou de uma escada. Nenhuma fratura é patognomônica de abuso, mas lesões metafisárias clássicas, fraturas de arcos costais (especialmente da região posterior e da 1º costela), afundamentos ou múltiplas fraturas de crânio (causados por traumassupostamente leves), fraturas de escápula, fraturas esternais e fraturas de processos espinhosos devem servir de alerta de abuso.

O abuso físico deve ser considerado quando um lactente que ainda não anda, com ou sem apoio (isto é, ie, andar apoiando-se em objetos no ambiente) apresenta lesões graves. Lactentes com lesões leves também devem ser reavaliados posteriormente. Um lactente pode parecer normal, apesar de traumas cerebrais significativos, de modo que um trauma craniano agudo infligido deve fazer parte do diagnóstico diferencial de todo lactente letárgico. Outras sugestões são lesões múltiplas em diferentes fases de cura ou evolução, lesões ( see page Abuso físico) cutâneas com padrões sugestivos de fontes específicas de lesões; e lesões que se repetem, o que indica abuso ou supervisão inadequada.

Um exame com a pupila dilatada pode ser recomendado para todas as crianças < 1 ano de idade com suspeita de abuso. A hemorragia retiniana ocorre de 85 a 90% dos traumas cranianos por abuso versus < 10% dos casos de trauma craniano acidental. Entretanto, hemorragias retinianas não são patognomônicas de abuso (1). Eles também pode ocorrer ao nascimento e persistir por 4 ou mais semanas. Quando a hemorragia da retina é devida a um trauma por acidente, o mecanismo é geralmente óbvio e ameaça a vida (p. ex., colisão de veículos), e as hemorragias são tipicamente pouco numerosas e confinadas nos polos posteriores.

Crianças com < 36 meses de idade (recomendação anterior, 24 meses) com possibilidade de abuso físico devem ter avaliação do esqueleto para verificar lesões ósseas anteriores (fraturas em fases diferentes de cicatrização ou elevação subperiostal dos ossos longos). Pesquisas raramente são feitas com crianças > 3 anos. A pesquisa padrão inclui imagens do

  • Esqueleto apendicular: úmeros, antebraços, mãos, fêmures, pernas e pés

  • Esqueleto axial: tórax (incluindo incidências oblíquas), pelve, coluna lombossacral, coluna cervical e crânio

Doenças físicas que podem provocar fraturas múltiplas incluem osteogênese imperfeita, raquitismo, e sífilis congênita. Na deficiência de cobre hereditária (síndrome de Menkes), a osteoporose pode levar a fraturas ósseas.

Abuso sexual

(Ver também updated guidelines for the medical assessment and care of children who may have been sexually abused [2016].)

Infecções sexualmente transmissíveis (2) em uma criança < 12 anos de idade quase sempre são resultado de abuso sexual. Quando uma criança sofreu abuso sexual, a mudança de comportamento (p. ex., irritabilidade, medo, insônia) pode, inicialmente, ser o único indício. Se houver suspeita de abuso sexual, as regiões perioral, anal e genitália externa devem ser examinadas em busca de lesões. Se houver suspeita de abuso sexual recente (≤ 96 horas), deve-se coletar evidências forenses utilizando um kit apropriado e manuseado de acordo com as normas legais exigidas ( see page Exame e coleta de evidências). Um exame envolvendo o uso de uma fonte de luz com uma câmera, como um colposcópio especialmente equipado, pode ser útil para o examinador e também para a documentação com finalidades legais.

Abuso emocional e negligência

Uma avaliação focalizando o aspecto geral e o comportamento pode revelar se a criança está tendo um desenvolvimento normal. Os professores e assistentes sociais são os primeiros a reconhecer a negligência. O médico pode notar a falta às consultas e vacinações fora do calendário de vacinações. A negligência médica de doenças crônicas potencialmente fatais, como asma e diabetes, pode resultar em atendimentos mas frequentes no consultório ou em prontos-socorros e baixa adesão ao tratamento recomendado.

Referências sobre diagnóstico

  1. 1. Maguire SA, Watts PO, Shaw AD, et al: Retinal haemorrhages and related findings in abusive and non-abusive head trauma: A systematic review. Eye (Lond) 27(1):28–36, 2013. doi: 10.1038/eye.2012.213

  2. 2. Jenny C, Crawford-Jakubiak JE; Committee on Child Abuse and Neglect; American Academy of Pediatrics: The evaluation of children in the primary care setting when sexual abuse is suspected. Pediatrics 132(2):e558–e567, 2013. doi: 10.1542/peds.2013-1741

Tratamento dos maus-tratos infantis

  • Tratamento das lesões

  • Notificar a agência apropriada

  • Elaboração de um plano de segurança

  • Aconselhamento e apoio à família

  • Às vezes, remoção da casa

O primeiro enfoque é o tratamento de emergência (incluindo possíveis infecções sexualmente transmissíveis) e os cuidados imediatos à criança. Deve-se cogitar o encaminhamento a um pediatra especializado em abusos infantis. Nas situações de abuso e negligência, as famílias devem ser abordadas com ajuda e apoio, e não de maneira punitiva.

Segurança imediata

Médicos e outros profissionais que mantêm contato com as crianças (p. ex., enfermeiras, professores, profissionais de creches, polícia), de todos os estados dos Estados Unidos, devem por lei informar incidentes suspeitos de abuso ou negligência (ver Mandatory Reporters of Child Abuse and Neglect). Cada estado tem as suas leis próprias. Membros de instituições públicas são encorajados, mas não obrigados a relatar suspeitas de abusos.

Qualquer pessoa que relata um abuso com bases justas e com boa-fé está imune de obrigações civis ou criminais. A não execução da notificação obrigatória de um relatório pode ficar sujeita a penalidades civis e criminais. As notificações são enviadas para o Serviço de Proteção à Criança e ao Adolescente ou outra agência apropriada. Na maioria das situações, é apropriado que os profissionais de saúde informem os responsáveis que foi feita uma notificação por exigência legal, e que eles serão contatados, entrevistados e provavelmente visitados em suas casas se o relatório for aceito. Em alguns casos, o profissional de saúde pode decidir se, ao informar aos pais ou responsáveis antes da polícia ou outro órgão de assistência, criará riscos maiores de agressão à criança e/ou a eles mesmos. Nestas circunstâncias, o profissional da saúde deve optar por atrasar as informações aos pais e responsáveis.

Os representantes das agências de proteção à criança e assistentes sociais fazem uma avaliação dos eventos e das circunstâncias da criança e podem ajudar o médico ou outro profissional a determinar a probabilidade de lesões subsequentes e, portanto, a identificar a melhor solução imediata para a criança. As opções incluem

  • Hospitalização para proteger a criança

  • Morar com parentes ou em residências temporárias (às vezes toda a família muda-se da casa do agressor)

  • Cuidados de adoção temporária

  • Casas com serviços de atendimentos sociais e acompanhamento médico imediatos

Uma criança desnutrida suspeita de ser vítima de negligência deve ser hospitalizada e receber nutrição de maneira apropriada à idade antes de qualquer outro cuidado nutricional de suporte ser iniciado (p. ex., tubo de gastrostomia). Uma criança que começa a melhorar quando hospitalizada constitui uma potente evidência de negligência (ou pobreza com falta de alimentos).

O médico tem um papel importante no trabalho das agências comunitárias para pleitear o melhor e o mais seguro para a criança. Os profissionais de saúde nos Estados Unidos muitas vezes são solicitados a escrever uma declaração de impacto, que é uma carta tipicamente dirigida a um funcionário do Child Protective Services (que pode então comunicar isso ao órgão de justiça apropriado), sobre a suspeita de que uma criança é vítima de maus-tratos. A carta deve conter uma explicação clara da história e achados do exame físico (em termos leigos) e um parecer sobre a probabilidade de que a criança tenha sido maltratada.

Acompanhamento

Os cuidados médicos básicos são fundamentais. Porém, as famílias de crianças que sofreram abusos ou negligência mudam-se com frequência, dificultando a continuidade dos cuidados. Faltar em compromissos é comum; consultas e visitas domiciliares por assistentes sociais e/ou enfermeiros de saúde pública podem ser úteis. Um centro de defesa à criança pode ajudar entidades comunitárias, profissionais de saúde e órgãos da justiça a trabalharem em conjunto como uma equipe multidisciplinar de forma mais coordenada, eficaz e amigável à criança.

É essencial uma inspeção cuidadosa do núcleo familiar, e das necessidades dos responsáveis, antes do contato com as agências de serviços comunitários. Um assistente social pode conduzir esta inspeção e ajudar com entrevistas e aconselhamento familiar. Assistentes sociais também podem fornecer assistência real para os responsáveis ajudando-os a obter assistência pública, creche e serviços de auxiliares domésticos (o que pode reduzir o estresse para os responsáveis). Eles também podem ajudar a coordenar os serviços de saúde mental para os responsáveis. Em geral, é necessário um contato periódico e continuado do assistente social.

Em algumas comunidades há programas de auxílio aos pais, compostos por pessoal treinado, não profissional, que dão suporte a pais abusivos e negligentes e fornecem exemplos de boas práticas de criação de filhos. Outros grupos de apoio aos pais também têm agido com sucesso.

Ofensas sexuais podem ter efeito tardio sobre o desenvolvimento e a adaptação sexual da criança, particularmente entre as crianças maiores e os adolescentes. O aconselhamento e a psicoterapia para crianças e adultos podem diminuir estes efeitos. Maus-tratos físicos, particularmente traumatismo cranioencefálico grave, também podem ter efeitos duradouros sobre o desenvolvimento. Se os médicos ou profissionais de saúde estiverem preocupados com o fato de que a criança pequena tem uma deficiência ou atraso de desenvolvimento, eles podem solicitar uma avaliação do sistema de intervenção precoce do seu estado (ver Early Intervention Services), que é um programa para avaliar e tratar crianças com suspeitas de deficiências ou atraso no desenvolvimento.

Remoção da casa

Embora a remoção de emergência temporária da casa até que a avaliação esteja completa e a segurança garantida às vezes seja feita, o objetivo fundamental dos Serviços de Proteção à Criança é manter a criança com sua família em ambiente saudável e seguro. Muitas vezes, oferecem-se às famílias serviços para reabilitar os responsáveis de modo que as crianças que foram afastadas possam estar novamente com a família.

Se esta intervenção não estiver assegurada, deve-se considerar a remoção a longo prazo e a perda dos direitos dos pais. Este passo significativo requer a petição da corte representada por um conselho legal do departamento do bem-estar. Esse procedimento específico varia entre um estado e outro nos Estados Unidos, mas geralmente envolve o testemunho legal familiar por um médico. Quando a sentença judicial é pelo afastamento da criança, uma alternativa é fornecida, tipicamente uma residência temporária, como um orfanato. Durante a realocação temporária, o médico da criança ou uma equipe médica especializada em cuidados infantis devem, se possível, manter contato com os pais e assegurar que todos os esforços estão sendo feitos para ajudá-los. Ocasionalmente, a criança pode sofrer abusos na casa de criação. O médico deve estar alerta para esta possibilidade.

À medida que a dinâmica familiar melhora, a criança pode retornar para os cuidados dos responsáveis. Entretanto, podem ocorrer recorrências de maus-tratos.

Prevenção da maus-tratos em crianças

A prevenção dos maus-tratos deve fazer parte de cada visita da criança ao consultório, mediante educação dos pais, responsáveis e identificação dos fatores de risco. Famílias em risco devem ser encaminhadas para serviços comunitários adequados.

Pais que foram vítimas de maus-tratos ou negligência podem ter maior risco de praticar abusos contra seus próprios filhos. Esses pais às vezes verbalizam a ansiedade quanto ao seu passado abusivo e estão dispostos a receber assistência.

Pais de primeira viagem, pais adolescentes e pais com várias crianças com < 5 anos também têm maior risco de abusar de seus filhos.

Muitas vezes, identificam-se os fatores de risco maternos para o abuso no período pré-natal (p. ex., mãe que fuma, tem transtorno por uso de substâncias, tem história de violência doméstica). Problemas de saúde durante a gestação, parto ou início da infância que podem afetar a saúde da mãe e/ou da criança podem enfraquecer o vínculo pais-criança ( see also page Cuidados para neonatos enfermos). Nesses momentos, é importante que os pais comentem seus próprios sentimentos e o bem-estar do lactente. Como podem estes pais tolerarem um lactente com muitas necessidades e problemas de saúde? Os pais dão apoio moral e físico um ao outro? Há parentes ou amigos que ajudam nas necessidades? O profissional de saúde alerta para dicas e capaz de fornecer suporte pode ter um impacto importante sobre a família e possivelmente prever maus-tratos na criança.

Informações adicionais

Os recursos em inglês a seguir podem ser úteis. Observe que este Manual não é responsável pelo conteúdo desses recursos.

  1. The evaluation of suspected child physical abuse (2015)

  2. Updated guidelines for the medical assessment and care of children who may have been sexually abused (2016)

  3. Mandatory Reporters of Child Abuse and Neglect: informações sobre quem deve denunciar o abuso de acordo com o estado nos Estados Unidos

  4. Early Intervention Services: serviços prestados pelos estados norte-americanos para lactentes e crianças pequenas

  5. Child Welfare Information Gateway: portal de informações sobre o bem-estar da criança do governo dos Estados Unidos contendo orientações sobre muitos aspectos do abuso infantil, bem como listas de recursos estaduais e federais

  6. Child Welfare Information Gateway: Child Abuse and Neglect: informações específicas sobre abuso infantil, incluindo definições, identificação, fatores de risco, notificação obrigatória e muito mais

  7. Prevent Child Abuse America: instituição beneficente para crianças que foca no abuso infantil, com muitas informações úteis para pais e profissionais de saúde e informações sobre políticas públicas

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