Os desequilíbrios ácido-base são alterações patológicas da pressão parcial de dióxido de carbono (Pco2) ou de bicarbonato sérico (HCO3−) que tipicamente produzem valores de pH arterial anormais.
As alterações reais de pH dependem do grau de compensação fisiológica e da presença de múltiplos processos.
(Ver também Regulação ácido-base.)
Classificação
Distúrbios ácido-base primários são definidos como metabólicos ou respiratórios, com base no contexto clínico e nas alterações primárias no HCO3− ou Pco2.
Acidose metabólica ocorre quando o HCO3−< 24 mEq/L no soro. As causas são
Alcalose metabólica caracteriza-se por HCO3−> 24 mEq/L no soro. As causas são
Acidose respiratória acontece quando a Pco2> é 40 mmHg (hipercapnia). A causa é
Alcalose respiratória ocorre quando a Pco2< a 40 mmHg (hipocapnia). A causa é
Mecanismos compensatórios começam a corrigir o pH ( Mudanças e compensações primárias em distúrbios ácidos-base simples) sempre que ocorre algum desequilíbrio ácido-base. A compensação não pode trazer o pH completamente ao normal e nunca se excede.
Um distúrbio ácido-base simples consiste em uma alteração única acompanhada de sua resposta compensatória.
Distúrbios ácido-base mistos abrangem ≥ 2 alterações primárias.
Mudanças e compensações primárias em distúrbios ácidos-base simples
Sinais e sintomas
Distúrbios ácido-base compensados ou leves causam poucos sinais e sintomas.
Distúrbios graves, não compensados, apresentam múltiplas consequências cardiovasculares, respiratórias, neurológicas e metabólicas ( Consequências clínicas dos distúrbios ácido-base e Curva de dissociação da oxi-hemoglobina).
Consequências clínicas dos distúrbios ácido-base
Diagnóstico
A avaliação se faz com gasometria arterial e eletrólitos séricos. A gasometria mede diretamente o pH e a Pco2. Os níveis de HCO3− na gasometria são calculados com a equação de Henderson-Hasselbalch; níveis de HCO3− em painéis químicos séricos são medidos diretamente e são considerados mais precisos em casos de discrepância. Em geral, o equilíbrio ácido-base é avaliado mais precisamente com a medida do pH e Pco2 no sangue arterial. Nos casos de insuficiência circulatória ou durante a reanimação cardiopulmonar, as medidas no sangue venoso podem refletir mais precisamente condições teciduais e orientar melhor a administração de bicarbonato e a adequação da ventilação.
O pH estabelece o processo primário (acidose ou alcalose), mas pode ser direcionado para os valores normais pela compensação. As alterações da PCO2 refletem o componente respiratório e as alterações do HCO3− refletem o componente metabólico.
Distúrbios ácido-base complexos ou mistos envolvem mais de um processo primário. Nesses distúrbios mistos, os valores podem ser enganosamente normais. Assim, ao avaliar distúrbios ácido-base é importante determinar se as mudanças em Pco2 e HCO3− mostram a compensação esperada ( Mudanças e compensações primárias em distúrbios ácidos-base simples). Se não mostrarem, então deve-se suspeitar de um segundo processo primário causando a compensação anormal. A interpretação deve considerar as condições clínicas (p. ex., doença pulmonar crônica, insuficiência renal, overdose de drogas).
O intervalo aniônico sempre deve ser calculado; seu aumento quase sempre indica acidose metabólica. Intervalo de ânions normal com HCO3− baixo (p. ex., < 24 mEq/L) com cloro (Cl−) sérico elevado indica acidose metabólica sem intervalo de ânions (hiperclorêmica). Em caso de acidose metabólica, calcular a variação da diferença (delta gap) para identificar alcalose metabólica concomitante e usar a fórmula de Winters para determinar se a compensação respiratória está adequada ou se reflete um 2º desequilíbrio ácido-base (PCO2 prevista = 1,5 (HCO3−) + 8 ± 2; se a PCO2 estiver mais elevada, significa acidose respiratória concomitante — se estiver mais baixa, alcalose respiratória).
A acidose respiratória é sugerida por Pco2> 40 mmHg; HCO3− deve compensar de maneira precisa, aumentando de 3 a 4 mEq/L para cada 10 mmHg de elevação da Pco2, mantida por 4 a 12 h (pode não ocorrer aumento ou apenas 1 a 2 mEq/L, que lentamente aumenta para 3 a 4 mEq/L ao longo dos dias). Elevações maiores de HCO3− implicam em alcalose metabólica primária; aumentos menores sugerem que não houve tempo para compensação ou que há acidose metabólica primária coexistente.
A alcalose metabólica é sugerida por HCO3−> 28 mEq/L. A Pco2 deve compensar, elevando cerca de 0,6 a 0,75 mmHg para cada aumento de 1 mEq/L no HCO3− (até cerca de 55 mmHg). Aumentos maiores implicam em acidose respiratória concomitante; aumentos menores, alcalose respiratória.
Alcalose respiratória é sugerida por Pco2< 38 mmHg. O HCO3− deve compensar ao longo de 4 a 12 h reduzindo 5 mEq/L para cada diminuição de 10 mmHg na Pco2. Diminuições menores significam que não houve tempo para compensação ou que uma alcalose metabólica primária coexiste. Diminuições mais acentuadas implicam em acidose metabólica primária.
Nomogramas (mapas ácido-base) são um método alternativo para diagnóstico de distúrbios mistos, permitindo a colocação simultânea em gráfico de pH, HCO3− e Pco2.
Cálculo do intervalo aniônico
O intervalo aniônico é definido pela concentração sérica de sódio (Na) menos a soma das concentrações de cloro (Cl−) e de bicarbonato (HCO3−).
Na+− (Cl−+ HCO3−)
O termo intervalo (gap) é enganador, pois a lei da neutralidade elétrica requer o mesmo número de cargas positivas e negativas em um sistema aberto; a diferença aparece nos exames de laboratório porque certos cátions (+) e ânions (—) não são mensurados nos exames laboratoriais de rotina. Portanto,
Na++ cátions não dosados (UC) = Cl−+ HCO3−+ ânions não dosados (UA)
e
o intervalo aniônico,
Na+ − (Cl−+ HCO3−) = UA − UC
Os ânions não mensurados predominantes são fosfato (PO43−), sulfato (SO4−), várias proteínas com cargas negativas e alguns ácidos orgânicos, responsáveis por 20 a 24 mEq/L.
Os cátions extracelulares não mensuráveis predominantes são potássio (K+), cálcio (Ca++) e magnésio (Mg++) e respondem por cerca de 11 mEq/L.
Assim, o intervalo aniônico típico é de 23 − 11 = 12 mEq/L. A intervalo de ânions pode ser afetado por aumentos ou diminuições de cátios ou ânions não mensurados.
Aumento do intervalo de ânions é mais comumente causado por acidose metabólica em que ácidos com cargas negativas — principalmente cetonas, lactatos, sulfatos ou metabólitos de metanol, etilenoglicol ou salicilatos — consomem (são tamponados por) HCO3−. Outras causas de aumento do intervalo de ânions incluem hiperalbuminemia e uremia (aumento de ânions) e hipocalcemia ou hipomagnesemia (diminuição de cátions).
Diminuição do intervalo de ânions não se relaciona à acidose metabólica, mas é causada por hipoalbuminemia (diminuição de ânions), hipercalcemia, hipermagnesemia, intoxicação por lítio e hipergamaglobulinemia como ocorre no mieloma (aumento de cátions), ou hiperviscosidade ou intoxicação por haleto (brometo ou iodeto). O efeito da concentração baixa de albumina pode ser considerado, ajustando-se a intervalo de ânions 2,5 mEq/L para baixo para cada queda de 1 -g/dL na albumina.
Intervalo de ânions negativo ocorre raramente, como um artefato laboratorial nos casos de hipernatremia grave, hiperlipidemia e intoxicação por brometos.
Diferença delta: a diferença entre o intervalo de ânions do paciente e o intervalo de ânions normal é denominado intervalo delta. Essa quantidade é considerada um equivalente de HCO3−, porque para cada unidade de aumento do intervalo aniônico, o HCO3− deve diminuir 1 unidade (por tamponamento). Assim, se for acrescentada a diferença delta ao HCO3− medido, o resultado deve estar dentro de valores normais de HCO3−; elevação indica a presença adicional de uma alcalose metabólica.
Exemplo: um paciente alcoólatra, vomitando, com aspecto enfermo, apresenta exames de laboratório mostrando
Ao primeiro olhar, os resultados não parecem importantes. Entretanto, os cálculos mostram elevação da intervalo de ânions:
137 − (90 + 22) = 25 (normal, 10 a 12)
indicando acidose metabólica. A compensação respiratória é avaliada pela fórmula de Winter:
Pco2 prevista = 1,5 (22) + 8 ± 2 = 41 ± 2
Previsto = medido, assim a compensação respiratória é apropriada.
Como há acidose metabólica, a diferença delta é calculada e o resultado é acrescentado ao HCO3− medido:
25 − 10 = 15
15 + 22 = 37
O HCO3− resultante corrigido está acima do intervalo normal do HCO3−, indicando a existência de alcalose metabólica primária concomitante. Portanto, o paciente tem desequilíbrio ácido-base misto.
Usando informações clínicas, pode-se deduzir uma acidose metabólica decorrente de cetoacidose alcoólica associada a alcalose metabólica por vômitos recorrentes com perda de ácido (HCl) e volume.
Pontos-chave
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Acidose e alcalose referem-se a processos fisiológicos que causam acúmulo ou perda de ácido e/ou álcali; o pH do sangue pode ou não ser anormal.
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Acidemia e alcalemia referem-se a um pH sérico anormalmente ácido (pH < 7,35) ou alcalótico (pH > 7.45).
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Os desequilíbrios ácido-base são classificados como metabólicos se a alteração do pH ocorrer primariamente por causa da alteração do bicarbonato (HCO3−) sérico e como respiratórios se a alteração for primariamente decorrente de uma modificação da Pco2 (aumento ou diminuição da ventilação).
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O pH determina o processo primário (acidose ou alcalose), as alterações da Pco2 refletem o componente respiratório e as alterações do HCO3− refletem o componente metabólico.
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Todos os distúrbios ácido-base resultam em compensação que tende a normalizar o pH. Distúrbios ácido-base metabólicos resultam em compensação respiratória (alteração no Pco2); distúrbios ácido-base respiratórios resultam em compensação metabólica (alteração no HCO3−).
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Mais de um distúrbio ácido-base primário pode estar presente simultaneamente. É importante identificar e tratar cada distúrbio ácido-base primário.
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A avaliação laboratorial dos desequilíbrios ácido-base é feita por gasometria, dosagem dos eletrólitos séricos e cálculo do intervalo aniônico.
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Usar uma das várias fórmulas, regras práticas ou nomograma ácido-base para determinar se os valores laboratoriais sugerem um único desequilíbrio ácido-base (e compensação) ou se há um segundo desequilíbrio ácido-base primário concomitante.
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Tratar cada distúrbio ácido-base primário.