A lavagem peritoneal diagnóstico (LPD) é um procedimento invasivo emergencial usado para detectar hemoperitônio e ajudar a determinar a necessidade de laparotomia após um trauma abdominal. Insere-se um catéter na cavidade peritoneal, seguido de aspiração do conteúdo intraperitoneal, frequentemente após sua diluição com cristaloides.
A LPD é raramente feita para detectar sangramento intra-abdominal nos países desenvolvidos porque foi substituída pela Extended Focused Assessment with Sonography in Trauma (Avaliação focada com ultrassonografia no trauma - protocolo estendido, FAST-Estendido). A LPD tem baixa especificidade, identifica muitas lesões que causam hemorragia, mas não exigem correção cirúrgica, e resulta em alta taxa de laparotomia negativa. A LPD é invasiva e apresenta risco de lesão iatrogênica nos órgãos abdominais durante o procedimento. A LPD também não detecta lesão retroperitoneal. Mas a LPD é mais sensível do que a E-FAST para lesão mesentérica, diafragmática e de víscera oca porque essas lesões (e o menor volume de hemorragia que produzem) são mais difíceis de visualizar nas imagens.
As técnicas mais comuns de LPD são
Fechada: inserção percutânea da agulha na cavidade peritoneal seguida de catéter sobre fio (técnica de Seldinger)
Semiaberta: dissecção até (e às vezes através) a fáscia do reto do abdome, seguida de técnica de catéter sobre agulha na cavidade peritoneal
A técnica aberta (minilaparotomia), na qual o operador disseca até a cavidade abdominal para visualizar diretamente o peritônio e incisá-lo para inserir o catéter de maneira mais direcionada, é menos frequentemente utilizada e não é discutida aqui.
Indicações
Indica-se a LPD se exames de imagem não estiverem disponíveis e se houver suspeita de lesão intra-abdominal que requer cirurgia, geralmente por
Trauma abdominal fechado com instabilidade hemodinâmica
Ferida por arma branca no abdome que penetra a fáscia (isto é, visto na exploração local da ferida) ou com outras preocupações quanto à entrada intra-abdominal (p. ex., a partir do instrumento utilizado, achados clínicos)
Traumatismo múltiplo com choque de etiologia incerta, especialmente em pacientes com exame físico não confiável do abdome (p. ex., devido a estado mental alterado por lesão na cabeça, intoxicação, lesão medular ou outras lesões dolorosas perturbadoras)
Raramente, indica-se LPD quando exames de imagem estão disponíveis, como na hipotensão associada a um resultado do exame E-FAST duvidoso ou exames de imagem que mostram líquido pélvico livre, mas nenhuma lesão aparente em órgão sólido (p. ex., ascite).
Contraindicações
Contraindicações absolutas
Indicações clínicas óbvias para laparotomia (p. ex., ferimento por arma de fogo no abdome ou no flanco, outra lesão abdominal penetrante com choque, evisceração, empalamento)
Contraindicações relativas
Disponibilidade de exames de imagem apropriados (p. ex., E-FAST, TC)
Fratura pélvica*
Incapacidade de inserir um catéter uretral*
Gestação (2º ou 3º trimestre)*
Cirurgia abdominal prévia†
Obesidade mórbida‡
* LPD aberta supraumbilical é necessária, para evitar sangramento retroperitoneal com propagação anterior, bexiga distendida ou fundo uterino gravídico, respectivamente.
† Aderências de cirurgias prévias dificultam a distribuição uniforme do líquido no abdome e aumentam o risco de víscera perfurada. Realiza-se LPD aberta, mantendo a incisão distante do local da incisão cirúrgica (em qualquer outro local na linha média, se possível, ou no quadrante inferior esquerdo).
‡ Realiza-se LPD infra-umbilical semiaberta ou aberta para acessar de forma mais segura e precisa o espaço peritoneal através da gordura subcutânea espessa.
Complicações
Complicações da LPD são
Herniação do intestino pela incisão
Lesão em órgãos e/ou vasos por agulha ou catéter
Infecção
Sangramento e/ou hematoma cutâneo
Problemas sem complicações incluem o retorno inadequado de líquido.
Equipamento
Procedimento estéril, proteção de contato
Solução antisséptica (p. ex., clorexidina, iodopovidona)
Campos estéreis (grandes), toalhas
Toucas, máscaras, aventais, luvas estéreis
Protetores faciais
Equipamentos gerais
Sonda nasogástrica
Catéter uretral
Envoltórios de gaze estéreis
Bolsa IV de 1 L de soro fisiológico comum ou Ringer lactato, idealmente aquecido à temperatura corporal, para infusão peritoneal
Conjunto de tubos IV, sem válvula unidirecional
Tubo de coleta de sangue para contagem de células sanguíneas
Sutura não absorvível (p. ex., nylon de tamanho 3-0 ou 4-0) ou grampos, para fechamento da pele
Técnica fechada (técnica de Seldinger, catéter sobre o fio-guia)
Kits pré-embalados ou bandejas cirúrgicas podem estar disponíveis, mas os equipamentos típicos são
Anestésico local (p. ex., lidocaína a 1% com adrenalina)
Agulha de calibre 25 e seringa de 5 a 10 mL para anestésico
Agulha introdutora de calibre 18 (cerca de 7,5 cm de comprimento) e seringa de 5 a 10 mL
Fio-guia flexível com a ponta em forma de J (cerca de 45 cm de comprimento)
Bisturi (com lâmina nº 11 ou nº 15)
Catéter de diálise peritoneal flexível
Técnica semiaberta
Equipamento como acima, mais
Bisturi
Retratores em ângulo reto
Tesouras, pinças hemostáticas e coletores
Aparelho de cauterização ou sutura absorvível para hemostasia
Considerações adicionais
Coagulopatia, seja terapêutica (isto é, devido ao uso de anticoagulantes) ou clínica (p. ex., decorrente de doença hepática grave), aumenta o risco de sangramento durante o procedimento, mas não é uma contraindicação; o diagnóstico de lesão intra-abdominal grave é uma preocupação mais premente.
Antes da LPD, inserir catéter uretral e sonda gástrica para descomprimir a bexiga e o estômago e, assim, evitar lesões por agulha, fio-guia ou inserções de catéter. Antes de tentar cateterismo uretral, deve-se excluir a suspeita de trauma uretral (p. ex., sugerido pela presença de sangue no meato, hematoma ou hematoma perineal) por uretrografia retrógrada.
Antibióticos profiláticos não são necessários para LPD.
Posicionamento
O paciente em decúbito dorsal.
Anatomia relevante
Insere-se o catéter na linha média longitudinal, 2 cm inferior ao umbigo. Esse local é distante do estômago e do omento, e a fáscia subjacente (linha alba) não é muito vascularizada.
Descrição passo a passo do procedimento
Normalmente, a técnica fechada é apropriada. A técnica semiaberta é uma alternativa (p. ex., em pacientes com gordura abdominal espessa).
Preparar o paciente
Como inserir uma sonda nasogástrica (ver Como inserir uma sonda nasogástrica)
Inserir um catéter urinário (ver Como fazer catéterismo uretral na mulher ou Como fazer catéterismo uretral no homem)
Se LPD semiaberta está prevista, depilar uma área ampla em torno do local previsto para a incisão.
Limpar uma ampla área de pele próximo ao local* com solução antisséptica e deixar secar.
Colocar toalhas estéreis ao redor do local.
Para a técnica semiaberta, colocar campos estéreis grandes para estabelecer uma área estéril maior.
Injetar anestésico no ponto de entrada da agulha e nos arredores, abrangendo o comprimento de qualquer incisão prevista (para técnica semiaberta) e até a fáscia.
* O local de entrada padrão é na linha média, 2 cm inferior ao umbigo.
Acessar a cavidade peritoneal
Técnica fechada
Inserir a agulha introdutora na linha média do abdome, 2 cm inferior ao umbigo, em um ângulo de 45 graus com a pele e direcionada inferoposteriormente à pelve.
Avançar a agulha até perceber que ela atravessa a fáscia e a membrana peritoneal e então continuar mais 2 a 3 mm.
Manter a agulha imóvel e aspirar delicadamente: se > 10 mL de sangue for aspirado, diagnostica-se hemoperitônio e o procedimento é encerrado. Esse resultado de teste também é positivo se há aspiração livre de conteúdo gastrointestinal ou bile.
Se nenhum sangue é aspirado, inserir a extremidade em J do fio-guia na agulha, com a curva apontada na mesma direção que o bisel da agulha, de modo a direcionar o fio-guia ao sulco pélvico direito ou esquerdo.
Avançar o fio-guia até ele parar ou até o comprimento do fio se projetar do canhão da agulha e permanecer ligeiramente mais longo que o catéter peritoneal. Se houver resistência ou o paciente sentir dor à medida que avança o fio-guia, interromper o procedimento e retirar a agulha e o fio-guia juntos como uma unidade (para evitar que a ponta da agulha avance com o fio-guia para dentro do paciente). Reinserir a agulha em um local ligeiramente diferente, mas ainda na linha média.
Segurar a ponta do fio-guia e retirar a agulha até a ponta sair da pele.
Segurar o fio-guia na superfície da pele e deslizar a agulha para fora do fio.
Usar o bisturi para fazer uma pequena incisão onde o fio-guia entra na epiderme, para possibilitar a passagem do catéter.
Rosquear o catéter sobre o fio-guia e deslizar o catéter para baixo até os dedos, segurando o fio-guia na pele. A extremidade do fio-guia agora deve estar saliente da extremidade do canhão do catéter; se não estiver, remover lentamente o fio-guia do abdome até a extremidade se projetar.
Segurar e controlar o fio-guia onde ele se projeta do canhão do catéter e avançar o catéter sobre o fio, usando um movimento de saca-rolhas conforme necessário, até que o catéter esteja totalmente inserido.
Retirar o fio-guia e iniciar a lavagem.
Técnica semiaberta (alternativa)
Um auxiliar é útil, particularmente se o paciente é obeso.
Fazer uma incisão vertical na linha média de 4 a 6 cm até a fáscia, começando logo abaixo do umbigo.
Interromper quaisquer sangramentos usando um eletrocautério ou suturas.
Segurar a fáscia com hemostatos para estabilizá-la e inserir a agulha introdutora diretamente através da fáscia.
Continuar conforme a técnica fechada.
Fazer lavagem peritoneal
Conectar a bolsa de solução de lavagem aquecida ao catéter com tubo IV e permitir que o líquido flua para a cavidade peritoneal.
Infundir 1 L em adultos, 10 mL/kg em crianças.
Depois que o líquido é instilado, abaixar a bolsa de solução quase vazia bem abaixo do nível do abdome e permitir que o líquido retorne à bolsa. Recuperar o máximo de líquido possível, mas apenas 250 mL é uma quantidade adequada.
Enviar o líquido para análise. A lavagem é positiva se há > 100.000 eritrócitos/mL, > 500 eritrócitos/mL ou teste de coloração de Gram positivo. Um teste negativo não exclui outra lesão em um órgão sólido, perfuração de víscera, ruptura diafragmática ou lesão retroperitoneal.
Remover o catéter.
Fechar qualquer incisão na pele com suturas ou grampos e cobrir o local.
Cuidados posteriores
Remover o catéter uretral e a sonda nasogástrica se eles não forem mais necessários.
Após uma LPD negativa, a maioria dos médicos considera fazer exames diagnósticos adicionais e internar o paciente para observação e exames abdominais seriados. Manter inicialmente o paciente em jejum, mas introduzir líquidos e, em seguida, alimentos, dependendo da condição clínica.
Alertas e erros comuns
Não alcançar a hemostasia cutânea durante um procedimento semiaberto incorre no risco de o sangue dos vasos cutâneos entrar no abdome e elevar falsamente a contagem de eritrócitos
Durante um procedimento semiaberto, dissecar inadvertidamente através da fáscia e entrar no abdome
Recomendações e sugestões
Se o fluxo de líquido é fraco, o omento pode estar bloqueando os orifícios do catéter. Palpação abdominal, reposicionamento do paciente para permitir que o líquido do lavado se mova, ou leve reposicionamento do catéter podem melhorar o fluxo.