Intoxicação por paracetamol

(N-acetil-para-aminofenol; APAP)

PorGerald F. O’Malley, DO, Grand Strand Regional Medical Center;
Rika O’Malley, MD, Grand Strand Medical Center
Revisado/Corrigido: jun 2022
Visão Educação para o paciente

Intoxicação pelo paracetamol pode causar gastrenterite horas após a ingestão e hepatotoxicidade em 1 a 3 dias. Após superdosagem, a gravidade da hepatotoxicidade é previsível pelos níveis de paracetamol no soro. O tratamento é feito com n-acetilcisteína, com a finalidade de prevenir ou minimizar a hepatotoxicidade.

(Ver também Princípios gerais da intoxicação.)

Paracetamol (N-acetil-para-aminofenol ou APAP) está presente em > 100 fármacos de venda livre. Os fármacos incluem preparações para crianças em líquido, comprimidos e cápsulas e, ainda, em diversas preparações para resfriados e tosse. Muitos fármacos prescritos também contêm paracetamol. Consequentemente, superdosagem de paracetamol é comum.

Fisiopatologia da intoxicação por paracetamol

O principal metabólito tóxico do paracetamol, imina de N-acetil-p-benzoquinona (NAPQI), é produzido no sistema enzimático do citocromo hepático P450; a glutationa depositada no fígado desintoxica este metabólito. Uma superdosagem esgota o depósito hepático de glutationa. Como resultado, NAPQI se acumula, causando necrose hepatocelular e, possivelmente, dano a outros órgãos (p. ex., rins e pâncreas). Teoricamente, doenças hepáticas decorrentes de álcool ou desnutrição aumentam o risco de toxicidade, pois as enzimas hepáticas prerrequisitadas aumentam a formação de NAPQI e a desnutrição (também comum em alcoólicos) reduz o depósito de glutationa hepática. No entanto, as doses terapêuticas de paracetamol para os pacientes alcoólicos não estão associadas a lesões hepáticas.

Intoxicação aguda por paracetamol

Para causar toxicidade, a superdosagem oral aguda precisa ser em um total de 150 mg/kg (cerca de 7,5 g em adultos) em 24 horas.

Sinais e sintomas da intoxicação por paracetamol

Intoxicação leve pode não causar sintomas e, quando presente, os sintomas da intoxicação por paracetamol grave são geralmente discretos até 48 horas após a ingestão. Os sintomas que ocorrem em 4 estágios (ver tabela Estágios da intoxicação aguda por paracetamol), compreendem anorexia, náuseas, vômitos e dor abdominal no quadrante superior. Pode ocorrer insuficiência renal e pancreatite, ocasionalmente sem insuficiência hepática. Após > 5 dias, a hepatotoxicidade melhora ou progride para insuficiência de múltiplos órgãos, a qual pode ser fatal.

Tabela

Estágios da intoxicação por paracetamol

  • Níveis de paracetamol no soro

  • Nomograma de Rumack-Matthew

Superdosagem de paracetamol deve ser considerada em todos os pacientes com ingestão não acidental que possam ter tentado suicídio e em crianças com ingestões porque as formulações que contém paracetamol são frequentemente ingeridas e os casos de superdosagem não são relatados. Além disso, como o paracetamol também causa mínimos sintomas durante as fases iniciais, é potencialmente letal, porém tratável, a ingestão também deve ser considerada em todos os pacientes com ingestões acidentais.

Dicas e conselhos

  • Considerar toxicidade oculta por paracetamol em todos os pacientes que têm ingestões.

Gravidade e probabilidade de hepatotoxicidade são previsíveis pela quantidade ingerida ou, mais acuradamente, pelo nível sérico de paracetamol. Se o momento da ingestão aguda é conhecido, usa-se o nomograma de Rumack-Matthew para estimar a probabilidade de hepatotoxicidade; se o momento da ingestão aguda não é conhecido, o nomograma não pode ser utilizado. Para uma simples superdosagem aguda de paracetamol tradicional ou de liberação rápida de paracetamol (que é absorvido 7 a 8 minutos mais rápido), os níveis são mensurados 4 horas após a ingestão e desenhados no nomograma. Um nível de 150 mcg/mL ( 990 micromol/L) e ausência de sintomas tóxicos indica que a hepatotoxicidade é muito improvável. Níveis altos indicam possível hepatotoxicidade. Para uma única superdosagem aguda de paracetamol de liberação prolongada (que tem 2 picos de níveis séricos separados por cerca de 4 horas), medem-se os níveis de paracetamol 4 horas após a ingestão e 4 horas mais tarde; se qualquer um dos níveis está acima da linha de toxicidade de Rumack-Matthew, é necessário tratamento.

Se não for possível confirmar o momento exato de uma ingestão única, pressupõe-se o pior caso para a determinação do risco. Ou seja, estima-se a maior quantidade de tempo possível desde a ingestão e, então, registra-se no nomograma de Rumack-Matthew. Por exemplo, se um paciente afirma que a superdosagem foi tomada entre 18 e 21 h, então usa-se 18 h como o horário de ingestão (pior caso). Da mesma maneira, se uma criança mora em uma casa em que não havia produtos de paracetamol, mas nas últimas 24 horas visitou um parente cuja casa tinha esses produtos, então o nível de paracetamol calculado na admissão seria interpretado como um nível de 24 horas. Na prática, as estimativas de pior caso costumam ser difíceis de calcular.

Nomograma de Rumack-Matthew para ingestões únicas de paracetamol

Representação gráfica semilogarítmica dos níveis de paracetamol versus tempo. Cuidados no uso deste gráfico:

  • As coordenadas de tempo referem-se ao momento depois da ingestão.

  • Níveis séricos dosados antes de 4 horas não podem representar níveis máximos.

  • O gráfico deve ser usado somente em relação a uma única ingestão aguda.

  • Inclui-se uma linha sólida inferior a 25% abaixo do nomograma padrão para permitir possíveis erros nos ensaios plasmáticos de paracetamol e tempo estimado a partir da ingestão de uma overdose.

Adaptado de Rumack BH, Matthew H: Acetaminophen poisoning and toxicity. Pediatrics 55 (6): 871–876, 1975; reproduzido com permissão de Pediatrics.

Se a intoxicação for confirmada ou fortemente suspeita ou se o tempo de ingestão não for claro ou for desconhecido, é indicado realizar exames adicionais. Realizam-se testes de função hepática e, na suspeita de intoxicação grave, mede-se o tempo de protrombina. Os resultados da aspartato aminotransferase (AST) e alanina aminotransferase (ALT) correlacionam-se com o estágio de intoxicação (ver tabela Estágios da intoxicação aguda por paracetamol). Níveis de AST > 1000 UI/L tem maior probabilidade de resultar de intoxicação por paracetamol do que de hepatite crônica ou doença hepática por álcool. Se o envenenamento for grave, a bilirrubina e a razão normalizada internacional podem estar elevadas.

Pequenos aumentos das aminotransferases (p. ex., até 2 ou 3 vezes o limite normal superior) podem ocorrer em adultos que tomam doses terapêuticas de paracetamol há dias ou semanas. Essas elevações parecem ser transitórias, geralmente desaparecem ou diminuem em questão de dias (mesmo com o uso contínuo de paracetamol), costumam ser clinicamente assintomáticas e provavelmente são insignificantes.

Aductos de proteína do paracetamol e/ou da cisteína são novos biomarcadores criados e comercializados como indicadores da hepatotoxicidade induzida pelo paracetamol. Embora os biomarcadores possam indicar exposição ao paracetamol, não indicam conclusivamente hepatotoxicidade induzida por paracetamol. Outros biomarcadores como o microRNA, grupo de alta mobilidade box-1 (HMGB-1) e queratina-18 estão sendo pesquisados, mas não são ferramentas diagnósticas padrão.

Prognóstico para intoxicação por paracetamol

Com tratamento apropriado, a mortalidade é incomum.

Indicadores de prognóstico reservado após 24 a 48 horas de ingestão da droga incluem:

  • pH < 7,3 depois de adequada reanimação

  • Relação normalizada internacional (RNI) > 3

  • Creatinina sérica > 2,6

  • Encefalopatia hepática grau III (confusão e sonolência) ou grau IV (estupor e coma)

  • Hipoglicemia

  • Trombocitopenia

A toxicidade aguda ao paracetamol não predispõe o paciente à cirrose.

Tratamento da intoxicação por paracetamol

  • N-acetilcisteína oral ou IV

  • Possível carvão ativado

Carvão ativado é administrado se o paracetamol provavelmente ainda permanecer no trato gastrintestinal.

N-acetilcisteína é um antídoto para intoxicação por paracetamol. Este fármaco é precursor da glutationa, diminuindo a toxicidade do paracetamol por elevar o depósito de glutationa hepática e também, possivelmente, por outros mecanismos. Ajuda a prevenir a hepatoxicidade desativando o metabólito tóxico NAPQI do paracetamol (N-acetil-p-benzoquinona imina) antes de que cause dano às células hepáticas. No entanto, ela não reverte o dano já causado às células hepáticas.

Na intoxicação aguda, N-acetilcisteína é recomendada se a hepatotoxicidade for provavelmente baseada na dose do paracetamol ou em seu nível sérico. O fármaco é mais eficaz se introduzida em 8 horas após a ingestão do paracetamol. Após 24 horas, o benefício do antídoto é questionável, mas deve ser administrado. Se o grau de toxicidade for incerto, a -acetilcisteína deve ser administrada até a toxicidade ser descartada.

A n-acetilcisteína é igualmente eficaz se for dada por via oral ou IV. A terapia IV é feita por infusão contínua. Uma dose de impacto de 150 mg/kg, em 200 mL de 5% D/W, dada por 15 minutos, é seguida por doses de manutenção de 50 mg/kg, em 500 mL de 5% D/W, dados a cada 4 horas, depois 100 mg/kg, em 1.000 mL de 5% D/W, dados por 16 horas. Em crianças, a dose deve ser ajustada para diminuir o volume total do líquido descartado; a consulta a um centro de controle é recomendada.

A dose de impacto da n-acetilcisteína por via oral é de 140 mg/kg. Esta dose é seguida por 17 doses adicionais de 70 mg/kg, a cada 4 horas. O gosto da n-acetilcisteína não é agradável; ela é administrada diluída 1:4 em bebida carbonada ou suco de fruta, podendo ainda causar vômitos. Se estes ocorrerem, pode-se utilizar antiemético; se os vômitos ocorrerem após 1 hora da ingestão do fármaco, é necessário repetir a dose. No entanto, o vômito pode ser prolongado e pode limitar o uso oral. Reações alérgicas não são comuns, mas ocorreram com uso oral e IV.

A insuficiência hepática é tratada com medidas de suporte. Nos casos de insuficiência hepática fulminante, o transplante de fígado é indicado.

Na superdosagem maciça de paracetamol, pacientes que ingerem > 50 gramas de paracetamol podem apresentar acidose metabólica grave, letargia, coma e hiperglicemia em 4 horas depois da ingestão. O mecanismo exato não está claro. Relatos de casos descrevem o sucesso do tratamento com infusão contínua de N-acetilcisteína até nenhum paracetamol ser detectado no soro. Relatou-se o tratamento bem-sucedido da ingestão maciça de paracetamol com hemodiálise intermitente e hemodiálise venovenosa contínua. Recomenda-se consultar um centro de controle de intoxicações ou um toxicologista.

Pontos-chave

  • Como o paracetamol é ubíquo, inicialmente assintomático e tratável quando administrado em doses excessivas, considerar seu efeito tóxico para todos os pacientes possivelmente intoxicados.

  • Usar o nomograma de Rumack-Matthew quando não se conhecer o momento da ingestão para prever o risco de hapatotoxicidade com base nos níveis séricos de paracetamol.

  • Se houver probabilidade de hepatotoxicidade, administrar N-acetilcisteína oral ou IV.

  • E se o paracetamol ainda estiver provavelmente no trato gastrintestinal, administrar carvão ativado.

  • Se o grau de toxicidade for incerto, iniciar a administração intravenosa ou oral de -acetilcisteína até informações definitivas mais conclusiva estarem disponíveis.

Intoxicação crônica por paracetamol

O uso excessivo e crônico ou repetidas superdosagens causam hepatotoxicidade em alguns pacientes. Em geral, a superdosagem crônica não é uma tentativa de autoagressão, mas em resultados de utilizar altas doses de forma inapropriada para tratar a dor. Os sintomas podem estar ausentes ou podem incluir algum dos sintomas que ocorrem na overdose aguda.

Diagnóstico

  • Níveis séricos de aspartato aminotransferase (AST) ou alanina aminotransferase (ALT) e paracetamol

O nomograma de Rumack-Matthew não pode ser usado, mas a probabilidade de hapatotoxicidade clinicamente significativa pode ser avaliada por AST, ALT e níveis séricos de paracetamol.

  • Se os níveis de AST e ALT estiverem normais (< 50 UI/L [0,83 microkat/L]), e o nível de paracetamol for < 10 mcg/mL (< 66 micromol/L), hepatotoxicidade significativa é improvável.

  • Se os níveis de AST e ALT estiverem normais, mas o nível de paracetamol for 10 mcg/mL (≥ 66 micromol/L), hepatotoxicidade significativa é possível; os níveis de AST e ALT são mensurados novamente após 24 horas. Se os níveis estiverem normais, hepatotoxicidade significativa é improvável; se os níveis estiverem altos, hepatotoxicidade significativa é assumida.

  • Se os níveis de AST e ALT estiverem normais, independente do nível de paracetamol, admite-se hepatotoxicidade significativa.

Tratamento

  • Às vezes, n-acetilcisteína

O papel da n-acetilcisteína no tratamento da intoxicação crônica por paracetamol ou na presença de hepatotoxicidade aguda estabelecida não está esclarecido. Teoricamente, o antídoto pode ter benefícios se dado > 24 horas após a ingestão se paracetamol residual (não metabolizado) estiver presente. A seguinte abordagem não se mostrou eficaz, mas pode ser usada:

  • Se a hepatotoxicidade é uma possibilidade [se os níveis de aspartato aminotransferase (AST) e alanina aminotransferase (ALT) estão normais e o nível de paracetamol está inicialmente elevado], administra-se uma dose de ataque de n-acetilcisteína de 140 mg/kg por via oral e 70 mg/kg por via oral a cada 4 horas durante as primeiras 24 horas. Se os níveis repetidos de AST e ALT (após 24 horas) estiverem normais, N-acetilcisteína deve ser suspensa; se os níveis repetidos forem altos, devem ser mensurados diariamente e a -acetilcisteína é continuada até que os níveis estejam normais.

  • Se é provável que a hepatotoxicidade ocorra (especialmente com AST e ALT iniciais altos), administra-se um curso completo de -acetilcisteína (isto é, dose de ataque como acima, então 70 mg/kg a cada 4 horas para 17 doses).

Os fatores prognósticos são similares àqueles da intoxicação aguda por paracetamol.

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