Kim et al. publicaram recentemente os resultados de um estudo de coorte prospectivo da associação entre o consumo de café autorrelatado na avaliação inicial e taquiarritmias cardíacas incidentais utilizando uma amostra de 386.253 pacientes do banco de dados Biobank do Reino Unido.1 Ao contrário das expectativas da sabedoria médica convencional, eles relataram que os pacientes que bebiam café apresentavam menos taquiarritmias do que aqueles que não o faziam, de maneira dose-dependente. Cada xícara diária de café foi associada a 3% menos taquiarritmias (razão de risco: 0,97; IC de 95%: 0,96–0,98) em um acompanhamento de 4,5 ± 3,1 anos em uma análise multivariada com ajuste para 19 outros possíveis fatores de confusão. As taquiarritmias específicas com associações estatisticamente significativas foram fibrilação atrial e/ou flutter atrial e taquicardia supraventricular. É claro que, mesmo com a análise multivariada, por muitos motivos, um estudo observacional não pode provar conclusivamente que o consumo de café protege contra taquiarritmias. Neste caso, os motivos incluem viés autorrelatado, alterações dependentes do tempo no consumo de café, confusão residual/não medida e causalidade reversa. Por outro lado, é improvável que seja realizado um estudo clínico randomizado sobre o consumo habitual de café. Sendo assim, dados desse tipo são os melhores que temos para orientar as recomendações para nossos pacientes.
Hill propôs nove características de um estudo observacional que conferem crédito à atribuição da causalidade a uma associação observada entre um fator ambiental e uma doença subsequente (às vezes chamadas “Critérios de Bradford Hill”).2 Em relação ao estudo de Kim et al., a causalidade se traduziria em proteção e as mais aplicáveis dessas características seriam plausibilidade biológica, consistência e gradiente biológico (ou seja, relação dose-resposta). Com relação à plausibilidade biológica, o principal, embora não o único, constituinte farmacologicamente ativo do café é a metilxantina cafeína. Os efeitos diretos da cafeína sobre a arritmogênese são complexos, com efeitos potencialmente arrítmicos (incluindo ativação simpática) e efeitos potencialmente antiarrítmicos (incluindo bloqueio do receptor de adenosina e propriedades antioxidantes). Quando se considera também os efeitos indiretos da cafeína e a possibilidade de efeitos de outros ingredientes ativos do café, torna-se rapidamente evidente que não é possível a previsão dos efeitos da ingestão habitual de café sobre a propensão a taquiarritmias, na população geral ou em um indivíduo específico. Consequentemente, qualquer associação entre o consumo de café e taquiarritmias é biologicamente plausível. Com relação à consistência dos resultados, outros estudos observacionais relataram que o consumo de café está associado a um aumento, diminuição ou ausência de alteração na incidência de taquiarritmias. No entanto, uma metanálise3 de seis estudos prospectivos envolvendo 228.465 sujeitos, publicada antes de 2014, concluiu que a exposição habitual à cafeína estava associada a uma tendência de redução da fibrilação atrial incidental (RR: 0,90; IC de 95%: 0,81–1,01; p = 0,07), que quase não teve significância estatística. Esses intervalos de confiança incluem a estimativa pontual da associação entre a ingestão de café e o risco de fibrilação atrial e/ou flutter atrial no estudo de Kim et al. (razão de risco: 0,97; IC de 95%: 0,96–0,98, p < 0,001). De fato, se os resultados de Kim et al. fossem incluídos em uma metanálise formal, a associação aparente com uma menor incidência de fibrilação atrial provavelmente seria estatisticamente significativa. Portanto, os resultados do estudo de Kim et al. são consistentes com estudos prévios. A presença de um gradiente biológico, ou resposta à dose, fortalece a inferência da causalidade em um estudo observacional porque, pelo menos até certo ponto, a magnitude de um resultado associado à exposição a um fator ambiental verdadeiramente causador aumenta com a magnitude da exposição. Conforme indicado acima, Kim et al. relatam que a associação inversa entre a ingestão habitual de café e taquiarritmias incidentais mostra uma relação dose-resposta com cada xícara diária de consumo de café sendo associada a 3% menos taquiarritmias (razão de risco: 0,97; IC de 95%: 0,96–0,98). Essa observação também é consistente com a de uma metanálise prévia3, que observou uma diminuição de 6% na fibrilação atrial incidental (RR: 0,94; IC de 95%: 0,90–0,99) para cada ingestão diária habitual de 300 mg de cafeína (equivalente a aproximadamente 2‑3 xícaras de café).
O estudo de Kim et al. adiciona um novo detalhe a estudos prévios desse tipo — análise de randomização mendeliana. Essa análise é baseada no conceito de que, se a randomização para a ingestão habitual de café não é possível, então a melhor coisa a seguir seria usar outro processo aleatório que determina a ingestão de café ou outro processo aleatório que determina a exposição à cafeína por meio de variações no metabolismo da cafeína. Estudos de associação genômica ampla identificaram polimorfismos de nucleotídeo único (single-nucleotide polymorphisms, SNPs) associados à ingestão de café e ao metabolismo da cafeína. Espera-se que indivíduos geneticamente predispostos a níveis mais elevados de ingestão de café ou com metabolismo lento de cafeína tenham níveis mais elevados de cafeína. Considerando que esses SNPs são herdados aleatoriamente (Lei da Segregação de Mendel), desde que os SNPs não estejam associados a outros fatores de confusão, a natureza fornece um estudo randomizado de exposição à cafeína que fornece evidência de causalidade se a presença de SNPs prevendo maior exposição à cafeína estiver associada à proteção contra taquiarritmias cardíacas. Infelizmente para a hipótese, a análise de randomização mendeliana relatada por Kim et al. não forneceu nenhuma evidência de causalidade. No que diz respeito à característica de consistência de Hill, vale a pensa salientar que um relatório prévio4 de uma análise de randomização mendeliana da associação entre o consumo de café e o risco de fibrilação atrial em uma população diferente de participantes também não encontrou nenhuma evidência para corroborar a causalidade.
A população de pacientes de Kim et al. incluiu 1.346 pacientes com taquiarritmias conhecidas na avaliação basal – 0,3% da amostra total. As análises neste grupo de pacientes foram comparáveis às análises no grupo geral, sendo cada xícara diária de consumo de café associada a 7% menos taquiarritmias (razão de risco: 0,93; IC de 95%: 0,90-0,96).
Como podemos integrar essas observações na prática clínica? Em conjunto com a literatura pré‑existente, os dados do relatório de Kim et al. não apoiam de forma convincente a inferência de que a ingestão habitual de café apresenta relação causal com a probabilidade reduzida de taquiarritmias cardíacas incidentais. Portanto, não seria aconselhável que nossos pacientes bebessem café apenas para esse propósito. No entanto, é pequena a probabilidade de que a ingestão habitual de café esteja causalmente relacionada a uma probabilidade aumentada de taquiarritmias cardíacas na população geral. Assim, parece desnecessário que nossos pacientes evitem tomar café por causa dessa preocupação. Essas conclusões também parecem ser aplicáveis a pacientes com taquiarritmias cardíacas conhecidas, embora com menos certeza. Em pacientes com taquiarritmias conhecidas, seria apropriado se afastar da prática atual de recomendar evitar a ingestão de café ou cafeína para todos os pacientes para reservar essa recomendação para aqueles pacientes que perceberam uma associação entre a sua ingestão e as recorrências de taquiarritmia.
Referências
- Kim EJ, Hoffman TJ, Nah G, Vittinghoff E, Delling F, Marcus GM. Coffee consumption and incident tachyarrhythmias: reported behavior, Mendelian randomization, and their interactions. 19 de julho de 2021. JAMA Intern Med doi:10.1001/jamainternmed.2021.3616
- Hill AB. The environment and disease: association or causation. Proc R Soc Med 58:295–300, 1965.
- Cheng M, Hu Z, Lu X, Huang J, Gu D. Caffeine intake and atrial fibrillation incidence: dose response meta-analysis of prospective studies. Can J Cardiol 30:448–454, 2014.
- Yuan S, Larsson SC. No association between coffee consumption and risk of atrial fibrillation: a Mendelian randomization study. Nutr Metab Cardiovasc Dis 29:1185–1188, 2019.