Queixas relacionadas a gases

PorJonathan Gotfried, MD, Lewis Katz School of Medicine at Temple University
Revisado/Corrigido: jan 2022
Visão Educação para o paciente

O intestino contém < 200 mL de gás; a quantidade de gases expulsos diariamente varia de 600 a 700 mL após uma dieta normal com 200 g de feijão cozido. Cerca de 75% dos flatos são derivados da fermentação das bactérias colônicas dos nutrientes ingeridos e glicoproteínas endógenas. Os gases incluem H2, CH4 e CO2. O odor dos flatos se correlaciona com a concentração de sulfeto de hidrogênio. O ar deglutido (aerofagia) e a difusão do sangue para a luz intestinal também contribuem para os gases intestinais. Os gases passam entre a luz e a corrente sanguínea em uma direção dependente da diferença nas pressões parciais. Assim, boa parte do nitrogênio (N2) na luz tem origem na corrente sanguínea e grande parte do hidrogênio na corrente sanguínea vem da luz.

Etiologia das queixas relacionadas a gases

Existem 3 queixas principais relacionadas com gases: eructações excessivas, distensão (meteorismo) e flatulência excessiva, cada uma com causas diferentes ( see table Algumas causas de queixas relacionadas a gases). Lactentes entre 2 e 4 meses de idade com crises de choro recorrentes geralmente parecem, para quem os observa, sentir dor, que antigamente era atribuída a cólicas ou gases. Entretanto, estudos mostram que não há aumento na produção de H2 ou no tempo de trânsito orocecal em crianças com cólicas. Consequentemente, a causa da cólica infantil continua obscura.

Eructações excessivas

As eructações resultam de ar deglutido ou de gás presente em bebidas gasosas. A aerofagia ocorre normalmente em pequenas quantidades quando se bebe ou ingere alguma coisa, mas algumas pessoas inconscientemente deglutem ar de modo repetido enquanto comem ou fumam e em especial quando estão ansiosas ou na tentativa de induzir a eructações. A polissialia aumenta a aerofagia e pode estar associada a vários distúrbios gastrointestinais (como DRGE), dentes mal ajustados, alguns medicamentos, hábito de mascar chicletes ou náuseas de qualquer etiologia.

Grande parte do ar deglutido é eructada. Apenas pequena parte desse ar passa para o intestino delgado; essa quantidade é aparentemente influenciada pela posição em que o indivíduo se encontra. Em uma pessoa em pé, o ar é rapidamente eructado; em uma pessoa em decúbito dorsal o ar é preso acima do líquido gástrico e tende a ser empurrado para o duodeno. A eructação excessiva pode também ser voluntária; pacientes que arrotam depois de ingerirem antiácidos tendem a atribuir a melhora dos sintomas mais à eructação do que aos antiácidos e podem intencionalmente eructar para ter seu desconforto aliviado.

Uma causa rara da eructação excessiva é a eructação supragástrica. Na eructação supragástrica, a entrada rápida de ar no esôfago é expelida após enrijecer o abdome. Pode ocorrer por vontade própria ou de maneira inconsciente e pode afetar gravemente a qualidade de vida (1).

Distensão (excesso de gases)

A sensação de distensão pode ocorrer isoladamente ou junto com outros sintomas gastrointestinais em pacientes com distúrbios funcionais (p. ex., aerofagia, dispepsia funcional, gastroparesia, síndrome do intestino irritável) e orgânicos (p. ex., câncer de ovário, câncer de colo). A gastroparesia (e consequente distensão abdominal) também tem muitas causas não funcionais, a mais importante das quais é a neuropatia autonômica visceral decorrente do diabetes; outras causas são a infecção pós-viral, fármacos com propriedades anticolinérgicas e consumo prolongado de opioides. Contudo, o gás excessivo no intestino não está claramente relacionado a essas queixas. Em muitas pessoas saudáveis, 1 L/hora de gás pode ser insuflado no intestino com pouquíssimos sintomas. Parece que muitos sintomas são incorretamente atribuídos ao “excesso de gás”

Por outro lado, alguns pacientes com sinto- mas gastrointestinais recorrentes frequente- mente não toleram pequenas quantidades de gás: distensão colônica retrógrada por meio de insuflação de balão ou instilação de ar durante colonoscopia geralmente causam desconforto significativo em alguns pacientes (p. ex., aqueles com síndrome do intestino irritável), mas provocam sintomas mínimos em outros. De maneira similar, pacientes com distúrbios alimentares (p. ex., anorexia nervosa, bulimia) com frequência têm a percepção alterada e são particularmente incomodados por sintomas como distensão. Logo, a anormalidade básica nos pacientes com sintomas relacionados a “gases” pode ser um intestino hipersensível. Motilidade alterada pode contribuir para os sintomas.

Flatulência excessiva

Existe grande variabilidade na quantidade e frequência da passagem de gases pelo reto. Do mesmo modo que na frequência evacuatória, indivíduos que se queixam de flatulência em geral têm uma concepção errada do que é normal. A média de flatos eliminados por dia gira em torno de 13 a 21. Gravar objetivamente a frequência de flatos (com um diário mantido pelo paciente) é o primeiro passo em sua avaliação.

Ensaio sobre a flatulência

(Publicado pela primeira vez na 14a Edição do MANUAL)

A flatulência, que pode causar angústia psicossocial significativa, é extraoficialmente descrita de acordo com suas características marcantes:

  1. O tipo “deslizante” (que ocorre em um elevador cheio de pessoas), que é liberado lentamente e silenciosamente, às vezes com um efeito devastador

  2. O esfíncter aberto, ou tipo "pooo", que se diz ser de maior temperatura e mais aromático

  3. O "staccato” (notas musicais separadas) ou em “barulho de tambor”, eliminado privadamente e com prazer

  4. O tipo “latido” (descrito em comunicado pessoal) é caracterizado por eliminação rápida e fina que interrompe eficazmente (e em geral termina) uma conversa (o odor não é uma característica proeminente)

Raramente, esse sintoma, geralmente perturbador, tem ganhado aspecto positivo, como no caso de um francês chamado “Le Petomane”, que se tornou famoso nos palcos do Moulin Rouge por meio de canções tocadas com os gases eliminados pelo seu reto.

Flato é o subproduto metabólico das bactérias intestinais; quase nada vem do ar deglutido ou pela difusão retrógrada de gases (primariamente nitrogênio) a partir da corrente sanguínea. O metabolismo bacteriano produz volumes significativos de H2, CH4 e CO2.

O hidrogênio é produzido em grandes quantidades em pacientes com síndromes de má absorção e depois da ingestão de certas frutas e vegetais que contêm carboidratos não digeríveis (p. ex., feijões cozidos), açúcares (p. ex., frutose) ou açúcares de álcool (sorbitol). Em pacientes com deficiência de dissacaridase (mais comumente deficiência de lactase), grandes quantidades de sacarídeos chegam ao colo e são fermentados em hidrogênio. Doença celíaca, espru tropical, insuficiência pancreática e outras causas de má absorção de carboidratos também devem ser consideradas em casos de excesso de gás colônico.

Metano também é produzido pelo metabolismo bacteriano dos mesmos alimentos (p. ex., fibra dietética). Contudo, cerca de 10% dos indivíduos tem bactérias que produzem CH4, mas não H2.

O dióxido de carbono também é produzido pelo metabolismo bacteriano e gerado pela reação de íons de bicarbonato e hidrogênio. Os íons de hidrogênio provêm do ácido clorídrico gástrico ou dos ácidos graxos liberados durante a digestão das gorduras — o último algumas vezes produz várias centenas de mEq de íons de hidrogênio. Os produtos ácidos liberados pela fermentação bacteriana de carboidratos não absorvíveis no colo podem também reagir com o bicarbonato para produzir CO2. Embora possa ocorrer distensão ocasionalmente, a rápida difusão de CO2 para o sangue costuma prevenir a distensão.

A dieta é responsável por grande parte da variação da produção de flatos entre os indivíduos, mas fatores ainda não compreendidos (p. ex., diferenças na flora colônica e motilidade) podem também ter participação.

Apesar da natureza inflamável do H2 e CH4 na flatulência, trabalhar perto de fogo não é perigoso. Entretanto, explosões, até com desenlaces fatais, têm sido relatadas durante cirurgia jejunal e colônica e colonoscopia, quando se utilizam procedimentos térmicos em pacientes com limpeza colônica incompleta.

Tabela

Referência sobre etiologia

  1. 1. Koukias N, Woodland P, Yazaki E, Sifrim D: Supragastric belching: Prevalence and association with gastroesophageal reflux disease and esophageal hypomotility. J Neurogastroenterol Motil 21(3):398–403, 2015. doi: 10.5056/jnm15002

Avaliação de queixas relacionadas a gases

História

A história da doença atual em pacientes com eructação deve ser direcionado para encontrar a causa da aerofagia, especialmente causas relacionadas à dieta.

Em pacientes com queixa de gases, distensão abdominal ou flatulência, deve-se explorar a relação entre os sintomas e as refeições (tanto a hora quanto o tipo e a quantidade de alimento), evacuações e esforços. Alguns pacientes, particularmente em casos agudos, podem utilizar o termo “gases” para descrever seus sintomas de isquemia coronariana. Acompanham-se alterações na frequência, cor e consistência das fezes. Observa-se história de perda ponderal.

A revisão dos sistemas deve procurar sintomas das possíveis causas, incluindo diarreia e esteatorreia (síndromes de má absorção como doença celíaca, espru tropical, deficiência de dissacaridase e insuficiência pancreática) e perda ponderal (câncer, má absorção crônica).

A história clínica deve revisar todos os componentes da dieta a fim de encontrar as causas possíveis (ver tabela Algumas causas de queixas relacionadas a gases).

Exame físico

O exame físico é geralmente normal, mas em pacientes com eructação ou flatulência, deve-se verificar sinais de doença orgânica de base no exame abdominal, retal e (em mulheres) pélvico.

Sinais de alerta

Os achados a seguir são preocupantes:

  • Perda ponderal

  • Sangue nas fezes (oculto ou vivo)

  • Sensação de "gás" no tórax

Interpretação dos achados

A distensão ou flatulência crônica e recorrente em um paciente com dor abdominal relacionada à defecação e associada a alterações na frequência e consistência das fezes, mas sem sinais de alerta, sugere síndrome do intestino irritável.

Sintomas prolongados em um indivíduo saudável que não perdeu peso provavelmente não são causados por doença médica grave, embora possa se considerar a presença de um distúrbio alimentar, especialmente em uma mulher jovem. A distensão acompanhada de diarreia, perda ponderal ou ambos (ou somente após a ingestão de alguns alimentos) sugere síndrome de má absorção.

Exames

Os testes não são indicados em caso de eructações, a menos que outros sintomas sugiram um distúrbio específico.

Deve-se considerar a realização de exames para intolerância a carboidratos (p. ex., lactose, frutose) com testes respiratórios particularmente quando a história sugerir o consumo significativo destes açúcares. O teste de hipercrescimento bacteriano do intestino delgado também deve ser considerado, particularmente em pacientes que também apresentem diarreia, perda ponderal ou ambos, de preferência pelas culturas aeróbica e anaeróbica do aspirado do intestino delgado obtido durante a endoscopia digestiva alta. O teste para supercrescimento bacteriano com testes de H2 no ar expirado, geralmente testes respiratórios com glicose-H2, está propenso a falso-positivo (isto é, em caso de trânsito rápido) e resultados falso-negativos (isto é, quando não há bactérias produtoras de H2). Pode-se considerar testes para doenças raras, como deficiência de sacarase-isomaltase, em pacientes com sintomas refratários ou graves (1).

A distensão persistente de origem recente em mulheres de meia-idade ou idosas (ou naquelas com exame pélvico anormal) exige uma ultrassonografia pélvica para excluir um câncer de ovário.

Referência sobre avaliação

  1. 1. Husein DM, Rizk S, Naim HY: Differential effects of sucrase-isomaltase mutants on its trafficking and function in irritable bowel syndrome: Similarities to congenital sucrase-isomaltase deficiency. Nutrients 13(1):9, 2021. doi: 10.3390/nu13010009

Tratamento das queixas relacionadas a gases

Eructações e distensão são difíceis de serem aliviados, já que com frequência são causados por aerofagia inconsciente ou sensibilidade aumentada a quantidades normais de gases. A aerofagia pode ser reduzida pela eliminação de determinadas atitudes, como uso de goma de mascar ou ingestão de bebidas gasosas, realização de técnicas cognitivo-comportamentais para evitar a deglutição de ar e manejo das doenças do trato digestório superior (p. ex., úlcera péptica). Alimentos que contenham carboidratos não absorvíveis devem ser evitados. Mesmo pacientes com intolerância à lactose geralmente toleram até 1 copo de leite, ingerido em pequenos goles ao longo do dia. O mecanismo de eructações de repetição deve ser explicado e demonstrado. Quando a aerofagia for desconfortável, a terapia comportamental incentivando a abertura da boca, respiração diafragmática e minimização da deglutição pode ser eficaz.

Fármacos têm pouco benefício. Simeticona, um agente que rompe as pequenas bolhas de gás, e vários agentes anticolinérgicos geram maus resultados clínicos. Alguns pacientes com dispepsia e plenitude pós-prandial se beneficiam com o uso de antiácidos, baixas doses de antidepressivos tricíclicos (p. ex., nortriptilina 10 a 50 mg por via oral uma vez ao dia) ou ambos para reduzir a hipersensibilidade visceral.

Flatulência em excesso é tratada evitando-se substâncias que a desencadeiem (ver tabela Algumas causas de queixas relacionadas a gases). Os pacientes podem tentar reduzir a ingestão de substâncias desencadeantes uma de cada vez e observar o efeito sobre os sintomas. Substâncias não absorvíveis (p. ex., psílio, farelo) podem ser adicionadas à dieta com o intuito de aumentar o trânsito colônico; entretanto, em alguns pacientes os sintomas podem piorar. Os pacientes também podem tentar dieta com restrição de FODMAP (oligossacarídeos fermentáveis, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis).

Carvão ativado pode, às vezes, ajudar a reduzir os gases e o odor desagradável; contudo, ele mancha as roupas e cora a mucosa oral. Existem roupas íntimas revestidas com carvão. Os probióticos também podem reduzir a distensão e a flatulência modulando a flora bacteriana intestinal, mas há poucos dados sobre essas substâncias. Antibióticos são úteis em pacientes com detecção de hipercrescimento bacteriano.

Certos óleos aromáticos (carminativos) podem relaxar a musculatura lisa e aliviar a dor secundária a cólicas em alguns pacientes. O óleo de hortelã-pimenta de liberação lenta é o agente de uso mais comum nessa classe.

Distensão abdominal funcional, distensão com flatulência ocorrem concomitantemente e sua evolução crônica é aliviada em parte pelo tratamento. Quando apropriado, é importante tranquilizar o paciente de que esses problemas não são deletérios para a saúde.

Pontos-chave

  • Os exames subsidiários são guiados pelo quadro clínico.

  • Estar atento a sintomas persistentes de início recente em pacientes idosos.

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