O heme, um pigmento contendo ferro, é um cofator essencial de inúmeras hemoproteínas. Praticamente todas as células do corpo humano requerem e sintetizam o heme. Mas a maior parte do heme é sintetizada na medula óssea (pelos eritroblastos e reticulócitos) e incorporada à hemoglobina. O fígado é o segundo local mais ativo de síntese do heme, a maior parte da qual é incorporada a enzimas do citocromo P-450. A síntese do heme requer 8 enzimas (ver tabela Substratos e enzimas da via biossintética do heme). Essas enzimas produzem e transformam espécies moleculares denominadas porfirinas (e seus precursores); o acúmulo dessas substâncias causa as manifestações clínicas das porfirias.
Etiologia
Com excepção do tipo esporádico da porfiria cutânea tardia (PCT), as porfirias são doenças hereditárias. A herança autossômica dominante é a mais comum.
Nos porfirias autossômica dominante, estados homozigóticos ou heterozigóticos compostos (i.e., 2 mutações heterozigóticas separadas, uma em cada alelo do mesmo gene no mesmo paciente) podem ser incompatíveis com a vida, tipicamente causando a morte fetal. A penetrância da doença em estados heterozigotos varia; portanto, a doença clinicamente expressa é menos comum que a prevalência genética. As 2 porfirias mais comuns, PCT e porfiria aguda intermitente (PAI), são autossômicas dominantes (20% dos casos de PCT são autossômicas dominantes). A prevalência da PCT é cerca de 1/10.000. A prevalência da mutação genética causadora da PAI é cerca de 1/1500, mas, como a penetrância é baixa, a prevalência da doença clínica também é cerca de 1/10.000. A prevalência tanto de PCT com PAI varia amplamente entre regiões e grupos étnicos.
Nas porfirias autossômicas recessivas, apenas estados homozigotos ou heterozigotos compostos causam a doença. Protoporfiria eritropoiética, a 3ª porfiria mais comum, é autossômica recessiva.
Herança ligada ao X ocorre em uma das porfirias, protoporfiria ligada ao X.
Substratos e enzimas da via biossintética do heme e doenças associadas às suas deficiências
Substrato/enzima* |
Porfiria |
Sintomas neuroviscerais |
Sintomas cutâneos |
Hereditariedade |
Glicina + coenzima succinil A Ácido delta-aminolevulínico sintetase 2 (ALAS 2) específico para o eritroide† |
Protoporfiria ligada ao X (devido a aumento da atividade enzimática) † |
Não |
Fenotipicamente semelhante à protoporfiria eritropoiética |
Ligada ao X |
Ácido delta-aminolevulínico Ácido delta-aminolevulínico desidratase (ALAD) |
Porfiria por deficiência de ALAD |
Sim |
Não |
Autossômico recessivo |
Porfobilinogênio Porfobilinogênio desaminase |
Porfiria intermitente aguda |
Sim |
Não |
Autossômico dominante |
Hidroximetilbilano Uroporfirinogênio III cossintase |
Porfiria eritropoiética congênita |
Não |
Doença de pele grave e mutilante |
Autossômico recessivo |
Uroporfirinogênio III Uroporfirinogênio descarboxilase |
Porfiria cutânea tardia |
Não |
Pele frágil, bolhas |
Duas variantes: |
Porfiria hepatoeritropoiética |
Não |
Bolhas intensas |
Autossômico recessivo |
|
Coproporfirinogênio III Coproporfirinogênio oxidase |
Coproporfiria hereditária |
Sim |
Pele frágil, bolhas |
Autossômico dominante |
Protoporfirinogênio IX Protoporfirinogênio oxidase |
Porfiria variegada |
Sim |
Pele frágil, bolhas |
Autossômico dominante |
Portoporfirina IX † Ferroquelatase |
Protoporfiria eritropoiética |
Não, exceto em pacientes com patologia hepatobiliar grave |
Dor cutânea, liquenificação e outras alterações cutâneas menores, mas sem bolhas |
Autossômico recessivo |
Heme (produto final incorporado em várias proteínas heme) |
— |
— |
— |
— |
*Intermediários sucessivos na via biossintética do heme, iniciando com glicina e succinil CoA e terminando com heme. A deficiência de uma enzima causa acúmulo de seu precursor. |
||||
†Protoporfiria ligada ao X resulta de mutações de ganho de função que aumentam a atividade do ALA 2, causando o acúmulo de protoporfirina. Diminuição da atividade do ALAS 2 causa uma anemia sideroblástica. |
Fisiopatologia
As porfirias resultam da deficiência de qualquer uma das últimas 7 enzimas da via biossintética do heme ou do aumento da atividade da primeira enzima na via, sintase-2 ALA (ALAS 2). (Deficiência da ALAS 2 provoca anemia sideroblástica em vez de porfiria.) Um único gene codifica cada enzima; qualquer uma das inúmeras mutações possíveis pode alterar os níveis e/ou atividade da enzima codificada por esse gene. Quando ocorre deficiência ou defeito em uma enzima da síntese do heme, seu substrato e qualquer outro precursor do heme normalmente modificado por aquela enzima pode se acumular na medula óssea, no fígado, na pele ou outros tecidos, causando toxicidade. Esses precursores podem surgir em quantidades excessivas no sangue e ser excretados na urina, na bile e nas fezes.
Embora as porfirias sejam mais precisamente definidas de acordo com a enzima deficiente, a classificação pelas principais características clínicas (fenótipo) é útil. Assim, as porfirias costumam ser divididas em 2 classes:
As porfirias agudas manifestam-se por meio de crises intermitentes de sintomas abdominais, mentais e neurológicos. Tipicamente, são desencadeadas por fármacos, atividade hormonal cíclica em mulheres jovens e outros fatores exógenos. As porfirias cutâneas tendem a produzir sintomas contínuos ou intermitentes envolvendo fotossensibilidade cutânea. Algumas porfirias agudas (coproporfiria hereditária, porfiria variegada) também podem apresentar manifestações cutâneas. Por causa da penetrância variável nas porfirias heterozigotas, a doença clinicamente expressa é menos comum que a prevalência genética (ver tabela Principais características das duas porfirias mais comuns).
A alteração da coloração da urina (vermelha ou vermelho-amarronzada) pode ocorrer na fase sintomática de todas as porfirias, exceto na protoporfiria eritropoiética (PPE) e na porfiria por deficiência de ALAD. A pigmentação resulta de oxidação dos porfrinogenes, o porfobilinogênio (PBG), um percursor de porfirinas, ou ambos. Algumas vezes, a cor surge após a urina permanecer no ar ou na luz por alguns minutos até algumas horas, permitindo a oxidação não enzimática. Nas porfirias agudas, exceto na porfiria por deficiência de ALAD, cerca de 1 em 3 heterozigotos (mais frequentemente em mulheres que em homens) também apresenta aumento de excreção de PBG (e alteração da coloração da urina) durante a fase latente.
Principais características das duas porfirias mais comuns
Diagnóstico
Verifica-se por meio de exames de sangue e urina a presença de porfirinas e porfobilinogênio precursores de porfirina (PBG) e ácido delta-aminolevulínico (ALA — ver Triagem para porfirias) em pacientes com sintomas sugestivos de porfiria. Os resultados anormais na triagem são confirmados por outros exames.
Pacientes assintomáticos, incluindo portadores suspeitos e indivíduos entre crises, são avaliados de forma similar. Entretanto, os testes são menos sensíveis nessas circunstâncias; medição da atividade enzimática de eritrócitos e leucócitos é consideravelmente mais sensível. A análise genética é altamente precisa e utilizada preferencialmente em famílias quando uma mutação é conhecida. Exame pré-natal (envolvendo amniocentese ou amostras de vilos coriônicos) é possível, mas raramente indicado.
Triagem para porfirias
Porfirinúria secundária
Várias doenças não relacionadas com porfirias podem envolver aumento da excreção urinária das porfirinas; esse fenômeno é descrito como porfirinúria secundária.
Doenças hematológicas, doenças hepatobiliares, e toxinas (p. ex., álcool, benzeno, chumbo) podem aumentar a excreção urinária da coproporfirina. Excreção elevada de coproporfirina na urina pode ocorrer em qualquer doença hepatobiliar porque a bílis é uma das vias de excreção de porfirina. Uroporfirina também podem estar elevada em pacientes com distúrbios hepatobiliares. A protoporfirina não é excretada na urina porque é insolúvel na água.
Alguns pacientes apresentam dor abdominal e sintomas neurológicos que imitam porfirias agudas. ALA e PBG urinárias normalmente não estão elevadas nessas doenças, e os níveis normais ajudam a distinguir porfirinúria secundária de porfirias agudas. Mas alguns pacientes com intoxicação por chumbo podem ter níveis de ALA urinária elevados. Deve-se medir os níveis de chumbo no sangue nesses pacientes. Se ALA e PBG urinárias são normais ou ligeiramente elevadas, medição das porfirinas totais urinárias e perfis de cromatografia líquida de alto desempenho dessas porfirinas são úteis para o diagnóstico diferencial das síndromes porfíricas agudas.