Peroxissomos são organelas intracelulares que contêm enzimas para beta-oxidação. Estas enzimas apresentam funções que se superpõem com as das mitocôndrias, com exceção das enzimas ausentes, para metabolizar ácidos graxos de cadeia muito longa (AGCML), com 20 a 26 carbonos. Portanto, distúrbios dos peroxissomos geralmente se manifestam com níveis elevados de AGCML (exceto a condrodisplasia rizomélica e doença de Refsum). Embora estes níveis de AGCML possam ajudar a triar as disfunções, são necessários, também, outros ensaios (níveis plasmáticos dos ácidos fitânico, pristânico e pipecólico; níveis de reticulócitos plasmalógeno). Para obter informações sobre outras doenças que afetam o metabolismo de ácidos graxos, ver Visão geral dos ácidos graxos e distúrbios do metabolismo do glicerol. Ver também Abordagem ao paciente com suspeita de distúrbio metabólico hereditário e testes para distúrbios metabólicos hereditários suspeitos.
Há 2 tipos de distúrbios peroxissômicos:
Adrenoleucodistrofia ligada ao X é o transtorno peroxissômico mais comum (incidência de 1/17.000 nascimentos); todas as outras são autossômicas recessivas, com incidência combinada de cerca de 1/50.000 nascimentos.
Para informações adicionais, ver Tabela.
Distúrbios da biogênese de peroxissomos e do metabolismo de ácidos graxos de cadeia muito longa
Doença (número OMIM) |
Proteínas ou enzimas deficitárias |
Gene defeituoso (localização cromossômica) |
Comentários |
Síndrome hepatorrenal (síndrome de Zellweger; 214100) |
Peroxina 1 |
PEX1 (7q21-q22)* |
Perfil bioquímico: fosfato de di-hidroxiacetona acetiltransferase e plasmógeno reduzidos; ácidos graxos de cadeia muito longa, ácido fitânico, pipecolato, ferro e capacidade de ligação ao ferro elevados Características clínicas: déficit de crescimento, fontanelas grandes, macrocefalia, turrinobraquicefalia, face dismórfica, catarata, nistagmo, cardiopatia congênita, hepatomegalia, disgenesia biliar, hipospadia, cistos renais, hipotonia, malformação encefálica Tratamento: sintomático, nenhum tratamento específico, embora o ácido cólico esteja sendo avaliado |
Peroxina 2 |
PEX2 (8q21.1)* |
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Peroxina 3 |
PEX3 (6q23-q24)* |
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Peroxina 5 |
PEX5 (12p13.3)* |
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Peroxina 6 |
PEX6 (6p21.1)* |
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Peroxina 12 |
PEX12 (17)* |
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Peroxina 14 |
PEX14 (1p36.2)* |
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Peroxina 26 |
PEX26 (22q11.21)* |
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Adrenoleucodistrofia neonatal (202370) |
Peroxina 1 |
PEX1 (7q21-q22)* |
Perfil bioquímico: ácidos graxos de cadeia muito longa elevados Características clínicas: dolicocefalia, face dismórfica, catarata, hiperpigmentação, convulsões, retardo do desenvolvimento, insuficiência adrenal Tratamento: sintomático, nenhum tratamento específico |
Peroxina 5 |
PEX5 (12p13.3)* |
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Peroxina 10 |
PEX10 (1)* |
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Peroxina 13 |
PEX13 (2p15)* |
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Peroxina 26 |
PEX26 (22q11.21)* |
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Doença de Refsum infantil (266510) |
Peroxina 1 |
PEX1 (7q21-q22)* |
Perfil bioquímico: ácido fitânico, colesterol, ácidos graxos de cadeia muito longa, ácido di-hidroxicolestanoico, ácido tri-hidroxicolestanoico e ácido pipecólico plasmáticos elevados Características clínicas: retardo do crescimento e do desenvolvimento, neuropatia periférica, hipotonia, surdez, dismorfismo facial, retinopatia, osteoporose, esteatorreia, sangramento episódico, hepatomegalia Tratamento: sintomático, nenhum tratamento específico |
Peroxina 2 |
PEX2 (8q21.1)* |
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Peroxina 26 |
PEX26 (22q11.21)* |
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Perfil bioquímico: no tipo 1, deficiência de plasmalogênio, ácido fitânico e 3-oxoacil CoA tiolase não processada elevados, deficiência de di-hidroxiacetonefosfato acil-CoA aciltransferase No tipo 2, plasmalogênio, ácido fitânico, alquil di-hidroxiacetonefosfato sintase e tiolase peroxissômica normais; deficiência de di-hidroacetonefosfato aciltransferase No tipo 3, peroxissomos anormais, deficiência de alquil di-hidroxiacetonefosfato sintase Características clínicas: nanismo com diminuição dos membros risomélicos, calcificação epifisária punctada e alargamento metafisário; crescimento intenso e retardo do desenvolvimento; microcefalia; hipoplasia da face média; micrognatia; surdez sensorineural; catarata; fenda palatina; ictiose; dificuldades respiratórias; cifoescoliose; fendas vertebrais; espasticidade; atrofia cortical; convulsões; morte em menos de 2 anos Tratamento: sintomático, nenhum tratamento específico |
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Tipo 1 (215100) |
Peroxina 7 |
PEX7 (6q22-q24)* |
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Tipo 2 (222765) |
Di-hidroxiacetonefosfato aciltransferase |
GNPAT (1)* |
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Tipo 3 (600121) |
Alquil-di-hidroxiacetonefosfato sintase |
AGPS (2q31)* |
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Hiperpipecolicacidemia (239400) |
Pipecolato oxidase |
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Perfil bioquímico: pipecolato plasmático elevado, aminoacidúria generalizada leve Características clínicas: hepatomegalia, desmielinação, degeneração do sistema nervoso central, incapacidade intelectual e retardo do desenvolvimento graves, retinopatia Tratamento: sintomático, nenhum tratamento específico |
Adrenoleucodistrofia ligada ao X (300100) |
Transportador de cassete de ligação de ATP 1 |
ABCD1 (Xq28)* |
Perfil bioquímico: ácidos graxos de cadeia muito longa plasmáticos elevados, deficiência de lignoceroil-CoA ligase peroxissômica Características clínicas: hiperpigmentação, cegueira, perda auditiva cognitiva, paraplegia espástica, impotência, distúrbios esfinctéricos, ataxia, disartria, insuficiência adrenal, hipogonadismo, atrofia pontina e cerebelar Tratamento: reposição de hormônio adrenal, transplante de medula óssea Mistura 4:1 de trioleato de gliceril e trierucato de glicerol (óleo de Lorenzo) aparentemente sem nenhum benefício clínico depois que a doença se manifesta, mas pode desacelerar a progressão se utilizada antes do início dos sintomas Algum sucesso nos ensaios atuais de terapia gênica |
Deficiência de acil-CoA oxidase 1 (adrenoleucodistrofia pseudonatal; 264470) |
Acil-Co-A oxidase peroxissômica de cadeia simples |
ACOX (17q25)* |
Perfil bioquímico: ácidos graxos de cadeia muito longa plasmáticos elevados; fitanato, pipecolato e ácidos di-hidroxicolestanoico e tri-hidroxicolestanoico peroxissômicos normais Características clínicas: hipotonia neonatal, retardo do desenvolvimento, surdez sensorineural, retinopatia, ausência de características dismórficas, leucodistrofia por volta dos 2 a 3 anos de idade Tratamento: não estabelecido |
Deficiência de proteína D-bifuncional (261515) |
Enzima D-bifuncional |
HSD17B4 (5q2)* |
Perfil bioquímico: ácidos graxos de cadeia muito longa e pipecolato séricos elevados, ácido tri-hidroxicolestanoico elevado em aspirado duodenal; deficiência de 3-oxoacil-CoA tiolase peroxissômica Características clínicas Hipotonia, reflexo de susto exagerado, diplegia facial, convulsões, choro agudo e fraco, retardo do desenvolvimento, face miopática, palato arqueado, membros abduzidos, cardiopatia ventricular Tratamento: não estabelecido |
Deficiência de 2-metilacil-CoA racemase |
2-metilacil-CoA racemase |
AMACR (5p13.2-q11.1)* |
Perfil bioquímico: ácido pristânico plasmático elevado Características clínicas: neuropatia sensorimotora de início na fase adulta, retinopatia Tratamento: não estabelecido |
Oxalúria primária |
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Perfil bioquímico: excreção de oxalato urinária elevada, acidúria glicólica Características clínicas: urolitíase de oxalato de cálcio, nefrocalcinose, insuficiência renal, bloqueio cardíaco, insuficiência vascular periférica, oclusão arterial, claudicação intermitente, neuropatia óptica, fraturas, morte durante a infância ou início da idade adulta Tipo 2 mais leve que o tipo 1 Tratamento Transplante hepatorrenal |
Hiperoxalúria tipo 1 (259900) |
Alanina-glioxilato aminotransferase peroxissômica |
AGXT (2q36-q37)* |
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Hiperoxalúria tipo 2 (260000) |
D-glicerato desidrogenase glioxilato redutase |
GRHPR (9cen)* |
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Doença de Refsum (266500) |
Fitanoil-CoA hidroxilase |
PAHX (10pter-p11.2)* |
Perfil bioquímico: ácido fitânico plasmático e tecidual elevado Características clínicas: retinite pigmentar, ataxia, ptose, miose, neuropatia periférica, anosmia, insuficiência cardíaca, surdez, ictiose, 4º metacarpal pequeno Tratamento: dieta pobre em ácido fitânico, plasmaférese |
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Peorxina 7 |
PEX7 (6q22-q24)* |
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Acidúria glutárica tipo 3 (231690) |
Glutaril CoA oxidase peroxissômica |
C7orf10 (7p14.1)* |
Perfil bioquímico: acidúria glutárica exacerbada por carga de lisina Características clínicas: retardo do desenvolvimento, vômitos pós-prandiais Tratamento: não estabelecido, possível benefício com riboflavina |
Acidúria mevalônica |
— |
— |
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Acatalasemia (115500) |
Catalase |
CAT (11p13)* |
Perfil bioquímico Falha do tecido em reagir com peróxido de hidrogênio Características clínicas Lesões orais ulcerosas em pacientes japoneses, mas não em suecos Tratamento: sintomático, nenhum tratamento específico |
*O gene foi identificado e a base molecular foi elucidada. OMIM = herança mendeliana para homens — online (ver o banco de dados OMIM ). |
Síndrome de Zellweger (SZ), adrenoleucodistrofia neonatal e doença infantil de Refsum (DIR)
Há 3 expressões sucessivas de doença, que vão desde a mais grave (SZ) até a menos grave (DIR). O defeito genético responsável ocorre em 1 dos pelo menos 11 genes envolvidos na formação do peroxissomo ou da proteína (família do gene PEX).
As manifestações incluem dismorfismo facial, malformações do sistema nervoso central, desmielinização, convulsões no neonato, hipotonia, hepatomegalia, cistos renais, membros curtos com epífises pontilhadas (condrodisplasia pontilhada), catarata, retinopatia, deficiências auditivas, retardo psicomotor e neuropatia periférica.
O diagnóstico se faz com a demonstração de níveis sanguíneos elevados de AGCML, ácido fitânico, intermediários dos ácidos biliares e ácido pipecólico.
Não há atualmente nenhum tratamento específico para essas doenças. O tratamento é principalmente sintomático.
Condrodisplasia risomélica punctada
Este defeito da biogênese do peroxissomo é causado pela mutação do gene PEX7 e caracterizado por alterações do esqueleto, que incluem hipoplasia facial medial, membros proximais notavelmente curtos, bossa frontal, narinas pequenas, cataratas, ictiose e profundo retardo psicomotor. Fendas vertebrais também são comuns.
Suspeita-se do diagnóstico da condrodisplasia rizomélica punctada por achados radiográficos, elevação sérica do ácido ftânico e níveis baixos de plasmalogênio nos eritrócitos; os níveis de AGCML são normais. A confirmação é por exame genético.
Não há tratamento específico contra condrodisplasia rizomélica punctada.
Adrenoleucodistrofia ligada ao X
Adrenoleucodistrofia ligada ao cromossomo X: disfunção causada pela deficiência do transportador de membrana peroxissomal ALDP codificada pelo gene ABCD1. Esse é um gene ligado ao X e, portanto, o distúrbio manifesta-se principalmente em homens. Atualmente, > 800 mutações foram identificadas (ver Adrenoleukodystrophy.info).
A forma cerebral afeta 40% dos pacientes. O início ocorre entre 4 e 8 anos de idade, e os sintomas de deficit de atenção evoluem ao longo do tempo para problemas comportamentais graves, demência e deficits de visão, audição e motores, causando incapacidade total e morte 2 a 3 anos após o diagnóstico. Também foram descritas formas leves entre adolescentes e adultos.
Aproximadamente 45% dos pacientes têm uma forma mais leve, denominada adrenomieloneuropatia (AMN), que se inicia aos 20 ou 30 anos, com paraparesia progressiva e alterações esfinterianas e sexuais. Cerca de 1/3 dos pacientes também desenvolvem sintomas cerebrais.
Pacientes com qualquer das formas desenvolvem, também, insuficiência da suprarrenal e aproximadamente 15% têm doença de Addison isolada sem comprometimento neurológico.
Suspeita-se do diagnóstico da adrenoleucodistrofia ligada ao X pela elevação isolada de AGCML e confirma-se pelo sequenciamento gênico.
Em casos selecionados, o transplante de medula ou de células-tronco pode ajudar a estabilizar os sintomas. Para os pacientes com insuficiência da suprarrenal, é necessária a reposição dos esteroides. Suplementação dietética com uma mistura 4:1 de trioleato de gliceril e trierucato de glicerol (óleo de Lorenzo) pode normalizar os níveis plasmáticos de AGCML, mas parece não interromper a degeneração neurológica nos pacientes sintomáticos. Mas se administrado para os meninos antes do início dos sintomas, pode desacelerar a progressão da doença; o benefício exato não foi determinado. Ensaios de terapia genética estão atualmente em andamento e mostraram algum sucesso preliminar.
Doença clássica de Refsum
A deficiência genética da enzima peroxissomal, fitanoil CoA hidroxilase que catalisa o metabolismo do áci-do fitânico (um componente vegetal, comum, da dieta), causa acúmulo da ácido fitânico.
As manifestações clínicas incluem neuropatia periférica progressiva, diminuição da visão devido à retinite pigmentosa, défict auditivo, anosmia, miocardiopatia, defeitos de condução e ictiose. O acometimento geralmente se dá por volta dos 20 anos.
O diagnóstico da doença de Refsum é confirmado pela elevação do ácido fitânico sérico e diminuição dos níveis do ácido pristânico (a elevação do ácido fitânico é acompanhada por elevações do ácido pristânico em várias outras disfunções peroxissomais).
O tratamento da doença de Refsum é feito com restrição, na dieta, do ácido fitânico (< 10 mg/dia), o que pode ser eficaz na prevenção e retardo dos sintomas, quando iniciado antes de sua manifestação.