A tripanossomíase africana é causada pelo Trypanosoma brucei gambiense na África Ocidental e Central e peloT. brucei rhodesiense na África Oriental; as duas espécies são endêmicas em Uganda. A Organização Mundial da Saúde tentou erradicar a tripanossomíase africana. Como resultado dos esforços de controle, houve uma redução drástica (> 95%) no número de casos notificados em todo o mundo nos últimos 20 anos. Em média, 1 caso é diagnosticado nos EUA a cada ano.
Os microrganismos são transmitidos por moscas tsé-tsé e podem ser transmitidos de modo pré-natal da mãe para o feto. Raramente, a infecção é transmitida por transfusões de sangue; teoricamente, ela pode ser transmitida por transplante de órgãos.
Outra espécie tripanossômica, Trypanosoma cruzi, é endêmica na América do Sul e Central e causa Doença de Chagas (tripanossomíase americana).
Fisiopatologia
Tripomastigotas metacíclicos inoculados por moscas tsetse se transformam em tripomastigotas na circulação sanguínea, que se multiplicam por divisão binária e se disseminam pelos vasos linfáticos e pela circulação após a inoculação. Tripomastigotas na circulação sanguínea multiplicam-se até que anticorpos específicos produzidos pelo hospedeiro reduzam drasticamente os níveis de parasitas. Porém, um subconjunto de parasitas escapa da destruição imunitária por uma mudança na glicoproteína de superfície e inicia um novo ciclo de multiplicação. O ciclo de multiplicação e lise se repete.
Mais tarde no curso da tripanossomíase africana, tripanossomos aparecem no líquido intersticial de muitos órgãos, inclusive no miocárdio e, com o tempo, no sistema nervoso central. O ciclo continua quando uma mosca tsé-tsé pica um ser humano ou animal infectado.
Os seres humanos são o principal reservatório de T. b. gambiense, mas esta espécie também pode infectar animais. Animais selvagens são o principal reservatório de T. b. rhodesiense.
Sinais e sintomas
A tripanossomíase africana tem 3 estágios:
Cutânea
Uma pápula pode se desenvolver no local da picada da mosca tsé-tsé em alguns dias a 2 semanas. Ela se transforma em um nódulo indurado de cor escura, doloroso e vermelho que pode ulcerar (cancro tripanossômico). Um cancro está presente em cerca da metade dos caucasianos com T.b. rhodesiense, mas é menos comum em africanos com T. b. rhodesiense e raramente é evidente em africanos com T.b. gambiense.
Hemolinfática
Febre intermitente, dores de cabeça, dor nas articulações e nervos e edemas faciais transitórios ocorrem durante vários meses na infecção por T. b. gambiense, mas em um período de semanas na infecção por T. b. rhodesiense. Um exantema eritematoso, circinado e evanescente pode se desenvolver. É mais facilmente visível em pacientes de pele clara. Linfadenopatia generalizada ocorre com frequência.
O sinal de Winterbottom (linfonodos aumentados no triângulo cervical posterior) é característico da doença do sono por T. b. gambiense.
Doença do sistema nervoso central
Na forma gambiense, o envolvimento do sistema nervoso central ocorre meses a vários anos após o início da doença aguda. Na forma rodesiana, a doença é mais fulminante e a invasão do sistema nervoso central muitas vezes ocorre dentro de algumas semanas a vários meses.
O envolvimento do sistema nervoso central causa cefaleia persistente, incapacidade de concentração, alteração de personalidade (p. ex., cansaço progressivo e indiferença), sonolência durante o dia, tremor, ataxia e coma terminal.
Sem tratamento, a morte ocorre após meses do início de doença no caso do T. b. rhodesiense e durante o 2º ou o 3º ano da doença, no caso do T. b. gambiense. Pacientes sem tratamento morrem em coma por desnutrição ou infecções secundárias.
Diagnóstico
Realiza-se o diagnóstico da tripanossomíase africana pela identificação de tripanossomas no líquido de um tumor, aspirado de linfonodo, sangue, aspirado da medula óssea ou, durante o estágio tardio da infecção, no líquor. As fontes preferidas para T. b. rhodesiense são os esfregaços de sangue e aspirado de linfonodo aumentado para T. b. gambiense. As diluições devem ser analisadas para tripanossomos móveis e as manchas devem ser fixadas, coradas com coloração de Giemsa (ou de Field) e analisadas. A concentração de tripanossomas no sangue geralmente é baixa, e as técnicas de concentração (p. ex., centrifugação, centrifugação em miniatura com troca de ânions, técnica quantitativa do creme leucocitário) melhoram a sensibilidade.
As amostras de detecção de anticorpos não têm utilidade clínica porque a seroconversão ocorre após o início dos sintomas. Porém, um teste de aglutinação para T. b. gambiense é útil em programas de triagem para identificar candidatos à análise microscópica.
Deve-se fazer a punção lombar em todos os pacientes com tripanossomíase africana. Quando há contaminação liquórica, a pressão de abertura pode aumentar, os níveis de líquor estão elevados nos linfócitos (≥ 6 células/mcL), proteína total e IgM inespecífica. Além de tripanossomos, células de Mott características (plasmócitos com vacúolos citoplasmáticos que contêm imunoglobina [corpos de Russell) podem estar presentes.
Outros resultados não específicos de laboratório incluem anemia, monocitose e, notadamente, níveis elevados de IgM policlonal no soro.
Tratamento
O tratamento da tripanossomíase africana varia de acordo com a espécie e estágio da doença.
Sem comprometimento do sistema nervoso central
Pentamidine e Suramina são eficazes contra as fases de circulação sanguínea de T. brucei spp., mas não cruzam a barreira hematencefálica e não são úteis para infecção do sistema nervoso central. Usa-se a pentamidina para T. b. gambiense, e a suramina é o único fármaco eficaz para o estágio hemolinfático da T. b. rhodesiense. A dosagem de isetionato de pentamidina é de 4 mg/kg, por via intramuscular (IM) ou por via intravenosa (IV), 1 vez/dia, durante 7 a 10 dias. Uma dose inicial de teste da suramina (disponível no CDC) 100 mg, IV (para excluir hipersensibilidade), é seguida de 20 mg/kg (até 1 g), IV nos dias 1, 3, 7, 14 e 21. Suramina não é utilizada para tratar T. b. gambiense. É potencialmente eficaz, mas foi associada a efeitos colaterais incluindo náuseas, vômito, fotofobia, hiperestesia, neuropatia periférica, nefrotoxicidade, urticária e prurido. Além disso, graves reações de hipersensibilidade podem ocorrer em pacientes co-infectados por Onchocerca volvulus, que é endêmico em muitas áreas da África Ocidental onde o T. b. gambiense ocorre.
Com comprometimento do sistema nervoso central
Quando disponível, eflornitina, 100 mg/kg, IV 4 vezes ao dia por 14 dias deve ser utilizada para doenças do sistema nervoso central devido a T. b. gambiense (eflornitina é ineficaz para T. b. rhodesiense). A OMS recomenda eflornitina em combinação com nifurtimox 5 mg/kg 3 vezes ao dia por 10 dias (1). Os efeitos adversos da eflornitina são sintomas gastrointestinais, supressão da medula óssea e convulsões. Os efeitos adversos comuns do nifurtimox são anorexia, náuseas, vômitos, perda ponderal, polineuropatia, cefaleia, tontura e vertigem.
Nos EUA, pode-se obter eflornitina, nifurtimox e melarsoprol a partir do Centers for Disease Control and Prevention (CDC).
Melarsoprol, um arsênico orgânico, é muitas vezes utilizado em países africanos por causa da disponibilidade limitada de eflornitina, embora os efeitos adversos possam ser graves e potencialmente fatais. A dose de melarsoprol é:
Foram propostos esquemas alternativos para pacientes debilitados com envolvimento grave de sistema nervoso central. A recomendação é de fazer exames seriados de acompanhamento, inclusive análise do líquor, a cada 6 meses (mais cedo caso haja recidiva dos sintomas) durante 2 anos.
Os efeitos adversos graves do melarsoprol são reações encefalopáticas, dermatite esfoliativa, toxidade cardiovascular (hipertensão arterial, arritmia e insuficiência cardíaca) e toxicidade habitual aos arsenicais nos sistemas gastrintestinal e renal.
Os corticoides têm sido utilizados para diminuir o risco de reações encefalopáticas.
Referência sobre o tratamento
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1. Büscher P, Cecchi G, Jamonneau V, et al: Human African trypanosomiasis. Lancet, 390(10110):2397-2409m 2017. doi: 10.1016/S0140-6736(17)31510-6.
Prevenção
A prevenção da tripanossomíase africana é evitar áreas endêmicas e proteger-se contra moscas tsé-tsé. Pessoas que visitam reservas de vida selvagem devem usar roupas de manga longa e calças que também cubram os punhos e calcanhares (moscas tsé-tsé picam através de roupas finas) com cores neutras que se misturam com o fundo e devem aplicar repelentes de inseto, embora a eficácia desses repelentes possa ser limitada.
A pentamidina confere alguma proteção contra o T. b. gambiense, mas pode danificar as células beta das ilhotas pancreáticas, resultando em liberação de insulina e hipoglicemia, evoluindo para o diabetes; portanto, raramente é utilizada como profilaxia.
Pontos-chave
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A tripanossomíase africana é provocada por Trypanosoma brucei gambiense na África Ocidental e Central e por T. b. rhodesiense na África Oriental; moscas tsé-tsé são o principal vetor.
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Há 3 estágios da doença: cutânea, hemolinfática e sistema nervoso central (doença do sono).
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Diagnosticar usando microscopia óptica de amostras de sangue (esfregaços finos ou grossos) ou outras secreções.
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O tratamento da tripanossomíase africana varia de acordo com a espécie e estágio da doença.
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Sem o comprometimento do sistema nervoso central, usar pentamidina para T. b. gambiense e suramina para T. b. rhodesiense.
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Com o comprometimento do sistema nervoso central, usar eflornitina (se disponível) isoladamente ou em combinação com nifurtimox ou melarsoprol para T. b. gambiense; usar melarsoprol para T. b. rhodesiense.