
A pandemia da doença de 2019 do novo coronavírus (COVID-19) atingiu primeiro os países mais ricos do mundo, provavelmente como resultado da sua interconexão global, envolvendo comércio e turismo. Ela se espalhou da China no início de 2020 para a costa oeste dos EUA e da China para a Europa e, depois, para a costa leste dos EUA. Esses países ricos moldaram as respostas globais de saúde pública destinadas a reduzir a transmissão viral de pessoa para pessoa através de excreções respiratórias, que envolvem
Nos países mais ricos, essas intervenções de saúde pública provaram ser eficazes na redução da transmissão viral e na prevenção contra a sobrecarga dos sistemas de saúde por um surto de casos de COVID-19.
No entanto, essas soluções muitas vezes seriam difíceis de implementar nos países em desenvolvimento. Nos países em desenvolvimento, as pessoas muitas vezes vivem em residências multigeracionais lotadas. Elas podem não ter acesso imediato à refrigeração de alimentos em casa, tornando necessário comprar os alimentos diariamente. Elas frequentemente não têm pronto acesso a água corrente para lavar as mãos, não têm saneamento adequado, têm pouca ou nenhuma conexão à internet para ter aulas ou trabalhar em casa, e pouca ou nenhuma economia para cobrir uma perda na renda (1). Até mesmo suprimentos básicos que são considerados garantidos em países desenvolvidos, como sabão, podem vir a faltar. Em algumas cidades grandes e ricas de países em desenvolvimento, milhões de pessoas pobres vivem em favelas, onde as condições locais tornam um desafio seguir as medidas preventivas projetadas para países desenvolvidos. Exemplos incluem as favelas no Rio de Janeiro e São Paulo no Brasil (2) ou as “townships” na Cidade do Cabo e Joanesburgo (3).
Além disso, muitos sistemas de assistência à saúde e de saúde pública nos países em desenvolvimento têm seu funcionamento comprometido pela falta de equipamentos necessários para cuidar de pacientes com COVID-19, como equipamento de proteção individual, suprimento de oxigênio no leito, oxímetros de pulso, ventiladores, leitos de UTI e treinamento insuficiente no controle de infecções por profissionais de saúde. Por exemplo, existem menos de 2.000 ventiladores funcionando disponíveis para atender a centenas de milhões de pessoas em hospitais públicos em 41 países africanos (4). Existe também a escassez crônica dos suprimentos mais básicos. Esses desafios são exacerbados pela prevalência de doenças parasitárias tropicais, malária, HIV/AIDS, tuberculose e cólera nesses países. Dados da província do Cabo Ocidental na África do Sul indicam que as pessoas vivendo com HIV ou tuberculose correm um risco mais do que duas vezes maior de morte pela COVID-19 (5).
Existem condições semelhantes em comunidades pobres e marginalizadas dentro dos países desenvolvidos. Essas comunidades também possuem uma capacidade significativamente menor de absorver os choques da pandemia; exemplos de tais comunidades incluem
Para todas as pessoas que vivem nessas condições, o distanciamento físico é difícil ou impossível.
Na África, com 1,3 bilhão de pessoas (cerca de 16% da população mundial), foi relatado que a pandemia da COVID-19 chegou primeiro no Egito em 14 de fevereiro de 2020, envolvendo um cidadão chinês. O primeiro caso confirmado na África Subsaariana foi relatado na Nigéria em 27 de fevereiro de 2020, envolvendo um cidadão italiano. Em 26 de maio de 2020, havia transmissão comunitária da COVID‑19 em mais da metade de todos os países africanos. O último país africano a relatar um caso de COVID-19 foi Lesoto em 13 de maio de 2020. Desde o primeiro caso de COVID-19 na África em meados de fevereiro, o ritmo do surto acelerou rapidamente, levando 98 dias para alcançar os primeiros 100.000 casos e apenas 18 dias para chegar a 200.000 casos.
Em 20 de junho de 2020, a África relatou 3,4% dos cerca de 8,5 milhões de casos totais confirmados e 7,2% dos 140.000 casos recém-relatados naquele dia (9). No entanto, apenas três países africanos compõem cerca de 55% de todos os casos confirmados na África: África do Sul, Egito e Nigéria. Esses três países possuem sistemas de saúde relativamente bem desenvolvidos, sugerindo que pode haver uma subnotificação generalizada em muitos dos outros países africanos com sistemas de saúde pública menos desenvolvidos. A África do Sul, Egito e Nigéria estão geralmente em 1º, 2º e 3º lugar em termos do aumento de casos em 24 horas. As contagens de casos nesses três países estão aumentando constantemente, dobrando a cada duas semanas.
Usando a África do Sul como exemplo de dificuldades a serem superadas nos países em desenvolvimento, observa-se que cerca de 80% dos mais de 58 milhões de pessoas na África do Sul são de origem africana negra e a maioria dos negros adultos ainda vive em “townships” da época do apartheid (10). As “townships” têm uma densidade populacional muito alta. As pessoas vivem em casas pequenas e improvisadas, construídas com tábuas e folhas de metal corrugado, com menos de um metro entre si, muitas vezes com sanitários comuns e torneiras de água comunitárias, cada um usado por 30 ou 40 pessoas por dia (11). Esses fatores dificultam muito a adesão aos requisitos de distanciamento social pelos residentes. Além disso, muitos moradores nestes locais têm empregos essenciais fora das “townships”, particularmente em hospitais e no abastecimento de alimentos da cidade e, muitas vezes, precisam viajar longas distâncias todos os dias no transporte público para trabalhar (12, 13).
Os primeiros casos de COVID-19 na África do Sul envolveram pessoas com recursos suficientes para terem viajado recentemente para o exterior. O primeiro paciente com COVID-19 de que se teve conhecimento na África do Sul foi um homem que testou positivo após voltar da Itália em 5 de março de 2020. Até 11 de março, foram relatados seis novos casos, com um caso do mesmo grupo de viagem da Itália e cinco outros que viajaram para outros países europeus. Em 15 de março, foram relatadas as primeiras transmissões locais. O número de casos subiu para 150 em 19 de março e, depois, disparou para 554 em apenas cinco dias. Dentro de um mês do 1º caso, havia 1.500 casos; o número então dobrou a cada 10 a 14 dias, atingindo uma contagem total de pouco mais de 92.000 no dia 21 de junho de 2020.
A partir dos relatórios oficiais da vigilância, é difícil saber a intensidade com que as “townships” foram atingidas pela COVID-19. O site do Instituto Nacional de Doenças Transmissíveis da África do Sul divide as contagens de casos apenas por idade, sexo e província (14). Em 22 de junho de 2020, a província do Cabo Ocidental (a localização da Cidade do Cabo, a segunda cidade mais populosa do país) é o epicentro do surto da COVID-19 na África do Sul, com cerca de 53% dos casos nacionais acumulados, seguida por Gauteng (a localização de Joanesburgo, a cidade mais populosa do país, e Pretória, sua capital administrativa) com 21%.
O site do governo provincial do Cabo Ocidental divide as contagens de casos por distritos e pelos oito subdistritos de saúde dentro da cidade do Cabo, a saber Leste, Oeste, Norte, Sul, Khayelitsha, Klipfontein, Tygerberg e Mitchells Plain (15); o ponto quente da província é a Cidade do Cabo, atualmente com 78% dos casos da província. Um terço da população de 3,7 milhões de habitantes da Cidade do Cabo vive em “townships” (16), que relatos de notícias dizem ser os pontos quentes da COVID-19 na cidade (Khayelitsha, Klipfontein, Du Noon no oeste, Baía de Hout no sul e Mitchells Plains), assim como em áreas da “classe trabalhadora” de Tygerberg (17, 18).
As autoridades sul-africanas agiram rapidamente para conter a disseminação da COVID-19. No final de março, o país entrou em um dos regimes mais rigorosos de confinamento do mundo. As pessoas, muitas das “townships”, tinham permissão para deixar suas casas durante este período apenas para trabalhar em “serviços essenciais”, para buscar assistência à saúde, coletar subsídios sociais, participar de pequenos funerais (não mais de 50 pessoas) e comprar mercadorias essenciais. O abrandamento das restrições teve início em 1.º de maio de 2020, em um momento em que a África do Sul estava relatando menos de 500 novos casos diariamente; mas, até o início de junho, cerca de 1.000 a mais de 2.000 novos casos estavam sendo relatados diariamente. Não obstante, devido a uma economia em deterioração, o governo optou por abrandar ainda mais o confinamento, apesar das contagens rapidamente ascendentes de casos.
Quase 1 bilhão de pessoas, ou 32% da população urbana no mundo, vive em “assentamentos informais” quase lotados e em condições não higiênicas (por exemplo, nas “townships” sul-africanas), a maioria deles no mundo em desenvolvimento (19). Intervenções para prevenir a disseminação da COVID-19, como distanciamento físico, que funcionaram bem em ambientes ricos em recursos, são impraticáveis nessas circunstâncias tanto na África do Sul (1), quanto em outros países com recursos limitados ou mesmo em algumas partes de algumas cidades ricas em países desenvolvidos. A correção rápida das condições de aglomeramento nessas áreas será difícil, mas Cingapura está reduzindo imediatamente a densidade populacional das acomodações atuais da sua força de trabalho de imigrantes e repensando sua futura habitação (20). Diz-se que o governo sul‑africano está planejando “reduzir a densidade” dos “assentamentos informais” com alta densidade (21). Quando possível, a mudança das condições de vida em “assentamentos informais”, como “townships”, favelas e acampamentos de sem teto, precisa ser realizada em parceria com organizações comunitárias nessas áreas, para que quaisquer medidas tomadas tenham maior probabilidade de serem eficazes.
Além disso, as políticas de ficar em casa durante a pandemia da COVID‑19 têm colocado em risco a vida de muitas pessoas dependentes da renda de cada dia para alimentar sua família. Como os efeitos econômicos negativos dos confinamentos têm efeitos significativos em comunidades socioeconomicamente desfavorecidas, componentes importantes do planejamento de resposta à pandemia incluem rações de alimentos e apoio monetário (11).
Referências