Doença hepática alcoólica

(Doença hepática alcoólica; doença hepática associada ao uso abusivo de álcool)

PorWhitney Jackson, MD, University of Colorado School of Medicine
Revisado/Corrigido: jul 2023
Visão Educação para o paciente

O consumo de álcool é muito elevado na maioria dos países ocidentais. De acordo com uma pesquisa utilizando a definição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição (DSM-5) de transtorno por uso de álcool, em 2021, 11,3% dos adultos norte-americanos com 18 anos ou mais manifestaram transtorno por uso de álcool no último ano (ver National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism [NIAAA]: Alcohol Use Disorder (AUD) in the United States). O NIAAA relatou um aumento de 25,5% nas mortes por uso de álcool, de aproximadamente 79.000 para mais de 99.000 por ano de 2019 a 2020, acima do aumento de 2,2% por ano nas duas décadas anteriores, sugerindo um aumento devido à pandemia da covid-19 (1).

Doenças hepáticas que ocorrem em pessoas com transtorno por uso de álcool, geralmente incluem, em ordem de ocorrência, mas às vezes coexistindo,

(Ver também the 2019 American Association for the Study of Liver Disease’s practice guidelines for Alcohol-Associated Liver Disease.)

O carcinoma hepatocelular também pode se desenvolver em pacientes com cirrose, principalmente se houver coexistência de acúmulo de ferro.

Referência

  1. 1. White AM, Castle IP, Powell PA, et al: Alcohol-Related Deaths During the COVID-19 Pandemic. JAMA 327(17):1704-1706, 2022. doi:10.1001/jama.2022.4308

Fatores de risco de doença hepática alcoólica

Os principais fatores de risco de doença hepática alcoólica são

  • Quantidade e duração do consumo de álcool

  • Sexo

  • Fatores genéticos e metabólicos

  • Obesidade

Quantidade de álcool

Uma dose padrão de bebida alcoólica contém 14 gramas de álcool, a quantidade encontrada em uma garrafa de 355 mL de cerveja a 5%, uma taça de 148 mL de vinho, ou uma dose de 44 mL de destilados contendo 40% de álcool por volume. (Ver National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA): Drinking Patterns and Their Definitions).

Parece haver um efeito limiar acima do qual a quantidade e a duração do uso de álcool aumentam o risco de desenvolvimento de doença hepática. Esse limiar não é conhecido e varia de acordo com os fatores de risco individuais (1).

O NIAAA define o consumo moderado como uma bebida padrão por dia para mulheres e duas bebidas padrão por dia para homens (ver também Dietary Guidelines for Americans, 2020-2025). Contudo, a Organização Mundial da Saúde afirmou que não há nível seguro de consumo de álcool que não afete a saúde (2).

O NIAAA define consumo "de risco" (consumo pesado) em homens como mais de 14 doses padrão por semana, ou mais de 4 doses por dia, e em mulheres como mais de 7 doses padrão por semana ou mais de 3 doses por dia (ver NIAAA: Drinking Levels Defined).

O consumo excessivo de álcool também pode aumentar a doença hepática relacionada ao álcool. O NIAAA define o consumo excessivo de álcool como um padrão de consumo que eleva os níveis de concentração de álcool no sangue para 0,08 g/dL, o que normalmente ocorre após 4 doses para mulheres e 5 doses para homens, ao longo de cerca de 2 horas (ver NIAAA: Drinking Levels Defined).

Pacientes com doença hepática relacionada ao álcool ou outras doenças hepáticas, em particular doença do fígado gorduroso não alcoólica, esteato-hepatite não alcoólica, hepatite viral, e hemocromatose, ou qualquer consumo que leve a consequências negativas, devem ser aconselhados e informados sobre o fato de que não há um nível seguro de consumo e que eles devem se abster.

The American Association for the Study of Liver Diseases (AASLD) recomenda que os pacientes que recebem atendimento nos ambulatórios de cuidados primários e gastroenterologia/hepatologia, departamentos de emergência e em hospitais (como pacientes internados) sejam examinados rotineiramente quanto ao uso de álcool com questionários validados. Intervenção breve, farmacoterapia e encaminhamento para o tratamento devem ser oferecidos a pacientes envolvidos em consumo de álcool perigoso (isto é, consumo contínuo excessivo de álcool ou bebedeiras ocasionais) (3, 4). A AASLD recomenda o uso do Alcohol Use Disorders Inventory Test (AUDIT) se houver suspeita de uso excessivo de álcool (3).

Pode-se utilizar biomarcadores de álcool, como o etilglucuronídeo na urina ou no cabelo, o sulfato de etila na urina, e o fosfatidiletanol (PEth) para apoiar a história do paciente e ajudar na recuperação.

Sexo

Mulheres são mais suscetíveis que os homens, mesmo após ajuste para peso corporal. As mulheres precisam de apenas 20 a 40 g de álcool/dia para estarem em risco — metade da quantidade para homens. O risco em mulheres pode ser maior porque elas têm menos álcool desidrogenase na mucosa gástrica; assim mais álcool intacto alcança o fígado.

Fatores genéticos

A hepatopatia alcoólica muitas vezes está presente em um padrão familiar, o que sugere a influência de fatores genéticos (p. ex., a deficiência de enzimas citoplasmáticas que eliminam o álcool).

Estado nutricional

Uma dieta rica em gordura insaturada aumenta a suscetibilidade, assim como a obesidade aumenta.

Outros fatores

Outros fatores de risco incluem deposição de ferro no fígado (não necessariamente relacionada com a ingestão de ferro) e hepatite viral concomitante.

Referências sobre fatores de risco

  1. 1. Rehm J, Taylor B, Mohapatra S, et al: Alcohol as a risk factor for liver cirrhosis: a systematic review and meta-analysis. Drug Alcohol Rev 29(4):437-445, 2010. doi:10.1111/j.1465-3362.2009.00153.x

  2. 2. Anderson BO, Berdzuli N, Ilbawi A, et al: Health and cancer risks associated with low levels of alcohol consumption. Lancet Public Health 8(1):e6-e7, 2023. doi: 10.1016/S2468-2667(22)00317-6

  3. 3. Crabb DW, Im GY, Szabo G, et al: Diagnosis and Treatment of Alcohol-Associated Liver Diseases: 2019 Practice Guidance From the American Association for the Study of Liver Diseases. Hepatology 71(1):306-333, 2020. doi:10.1002/hep.30866

  4. 4. Saunders JB, Aasland OG, Babor TF, et al: Development of the Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT): WHO Collaborative Project on Early Detection of Persons with Harmful Alcohol Consumption--II. Addiction 88(6):791-804, 1993. doi:10.1111/j.1360-0443.1993.tb02093.x

Fisiopatologia da doença hepática alcoólica

Absorção e metabolismo do álcool

O álcool (etanol) é rapidamente absorvido pelo estômago, mas a maior parte é absorvida pelo intestino delgado. O álcool não pode ser armazenado. Uma pequena quantidade é degradada durante o trânsito pela mucosa gástrica, mas a maior parte é catabolizada no fígado, primeiramente pela álcool desidrogenase (ADH), mas também pelo citocromo P-450 2E1 (CYP2E1) e pelo sistema de enzima de oxidação microssomal (MEOS).

Metabolismo via álcool desidrogenase envolve:

  • Álcool desidrogenase, enzima citoplasmática, realiza oxidação do álcool em acetaldeído. Os polimorfismos genéticos na álcool desidrogenase são responsáveis por diferenças individuais no nível sérico de álcool após o mesmo consumo, mas não na suscetibilidade à doença hepática alcóolica.

  • A acetaldeído desidrogenase (ALDH), uma enzima mitocondrial, realiza a oxidação do acetaldeído no acetato. Consumo crônico de álcool aumenta a formação de acetato. Asiáticos que têm baixos níveis de ALDH são mais suscetíveis aos efeitos tóxicos do acetaldeído (p. ex., rubor); os efeitos são os mesmos do dissulfiram, o qual inibe a ALDH.

  • Essas reações de oxidação geram hidrogênio, que converte o dinucleotídeos de nicotinamida-adenina (NAD, nicotinamide-adenine dinucleotide) à sua forma reduzida (NADH), o que por sua vez aumenta o potencial redox (NADH/NAD) no fígado.

  • O aumento do potencial redox inibe a oxidação de ácidos graxos e a gliconeogênese, promovendo o acúmulo de gordura no fígado.

Etilismo crônico induz o MEOS (principalmente no retículo endoplasmático) a aumentar sua atividade. A principal enzima envolvida é CYP2E1. Quando induzida, a via MEOS é responsável por 20% do metabolismo alcoólico. Essa via gera espécies reativas de oxigênio, aumentando o estresse oxidativo e a formação de radicais livres de oxigênio.

Acúmulo de gordura no fígado

O acúmulo de gordura nos hepatócitos é causado pelas seguintes razões:

  • A exportação de gorduras do fígado está diminuída em razão da oxidação de ácidos graxos e da diminuição da produção de lipoproteínas.

  • A entrada de gorduras está maior em razão da diminuição da exportação de gorduras no fígado, do aumento da lipólise periférica e da síntese de triglicerídios, resultando em hiperlipidemia.

O acúmulo hepático de gorduras pode predispor a um subsequente dano oxidativo.

Endotoxinas intestinais

O álcool modifica a permeabilidade intestinal, aumentando a absorção de endotoxinas liberadas pelas bactérias intestinais. Em resposta às endotoxinas (as quais um fígado já comprometido não consegue desentoxicar), os macrófagos hepáticos (células de Kupffer) liberam radicais livres, aumentando o dano oxidativo.

Dano oxidativo

O estresse oxidativo está aumentado por

  • Hipermetabolismo hepático secundário ao consumo de álcool

  • Dano peroxidativo lipídico induzido por radicais livres

  • Redução da proteção antioxidante (p. ex., glutation, vitamina A e E) causada pela desnutrição secundária ao álcool

  • Ligação entre produtos oxidantes, como acetaldeído, com proteínas de células hepáticas, formando neoantígenos e resultando em inflamação

  • Acúmulo de neutrófilos e outros leucócitos, atraídos pelo dano peroxidativo lipídico e neoantígenos

  • Citocinas inflamatórias secretadas pelos leucócitos

Acúmulo hepático de ferro, se presente, agrava o dano oxidativo. Pode haver acúmulo de ferro na doença hepática alcoólica dependendo da ingesta de ferro, contido principalmente em vinhos. Essa condição deve ser diferenciada da hemocromatose hereditária.

Inflamação, morte celular e fibrose resultantes

O ciclo vicioso de piora da inflamação ocorre por: necrose celular e apoptose resultantes da perda de hepatócitos e subsequentes tentativas de regeneração resultando em fibrose. Células estreladas (células de Ito), presentes nos sinusoides hepáticos, proliferam-se e diferenciam-se em miofibroblastos, produzindo excesso de colágeno do tipo I e matriz extracelular. Como resultado, o estreitamento dos sinusoides limita o fluxo sanguíneo. O estreitamento das vênulas hepáticas terminais secundário à fibro-se compromete a perfusão hepática e contribui para a hipertensão portal. Fibrose extensa é associada a tentativas de regeneração, resultando em nódulos hepáticos. Esse processo culmina em cirrose.

Patologia da doença hepática alcoólica

Esteatose hepática, hepatite alcoólica e cirrose são geralmente consideradas manifestações independentes e progressivas da doença hepática relacionada com o álcool. Entretanto, frequentemente se sobrepõem.

Esteatose hepática relacionada com o álcool (fígado gorduroso) é a consequência inicial e mais comum do consumo excessivo de bebidas alcoólicas. A esteatose hepática é potencialmente reversível. A esteatose hepática é o acúmulo de macrovesículas de gordura sob a forma de grandes gotas de triglicerídios que deslocam o núcleo hepatocitário, principalmente nos hepatócitos perivenulares. O fígado aumenta suas dimensões.

Hepatite alcoólica (esteato-hepatite) é a combinação de esteatose hepática, inflamação hepática difusa e necrose hepática (geralmente focal), em diversos graus de gravidade. Os hepatócitos lesionados estão edemaciados com um citoplasma granular (balonização hepatocitária) ou contêm proteínas fibrilares no citoplasma (corpúsculos de Mallory ou hialinos alcoólicos). Hepatócitos intensamente lesionados tornam-se necróticos. Sinusoides e vênulas hepáticas terminais tornam-se estreitas. Cirrose pode estar presente.

Cirrose alcóolica é a doença hepática avançada caracterizada por fibrose extensa, que altera a arquitetura hepática normal. O acúmulo de gordura presente varia. A hepatite alcoólica pode coexistir. A fraca tentativa de regeneração hepática compensatória provoca a formação de nódulos hepáticos relativamente pequenos (cirrose micronodular). Como resultado, o fígado frequentemente encolhe. Com o tempo, mesmo após a abstinência, a fibrose forma bandas largas, separando o tecido hepático em grandes nódulos (cirrose macronodular — ver Cirrose: fisiopatologia).

Sinais e sintomas da doença hepática alcoólica

Os sintomas geralmente tornam-se aparentes entre os 30 e 40 anos de idade; problemas mais graves aparecem cerca de uma década mais tarde.

Esteatose hepática relacionada ao álcool é frequentemente assintomática. Em um terço dos pacientes, o fígado esta aumentado e macio, mas este não é o curso usual.

Hepatite alcoólica varia entre um quadro leve e reversível até uma doença com risco de morte. Em sua maioria, os pacientes com doença moderada estão desnutridos e apresentam fadiga, febre, icterícia, dor no hipocôndrio direito, hepatomegalia dolorosa e, algumas vezes, sopro hepático. Cerca de 40% da exteriorização clínica ocorre após hospitalização, com consequências que variam desde leves (p. ex., piora da icterícia) até graves (p. ex., ascite, encefalopatia portossistêmica, sangramento varicoso, falência hepática com hipoglicemia e coagulopatia). Outras manifestações da cirrose podem estar presentes.

Cirrose, se compensada, pode ser assintomática. O fígado geralmente está pequeno; quando aumentado de tamanho, esteatose hepática ou hepatoma devem ser considerados. Os sintomas variam desde os relacionados com a hepatite alcoólica até os das as complicações da doença hepática terminal, como hipertensão portal (geralmente com varizes esofágicas e sangramento do trato gastrointestinal superior, esplenomegalia, ascite e encefalopatia portossistêmica). A hipertensão portal pode provocar derivação arteriovenosa intrapulmonar com hipoxemia (síndrome hepatopulmonar), que causa cianose e baqueteamento digital. Pode-se desenvolver insuficiência renal aguda secundária à progressiva queda do fluxo sanguíneo renal (síndrome hepatorrenal). Há desenvolvimento de carcinoma hepatocelular em cerca de 10 a 15% dos pacientes com cirrose alcoólica.

O consumo excessivo crônico de bebidas alcoólicas, em vez de doença hepática, causa contratura de Dupuytren da fáscia palmar, veias aracneiformes, miopatia e neuropatia periférica. Em homens, o consumo excessivo crônico de bebidas alcoólicas causa sinais de hipogonadismo e feminização (p. ex., pele macia, ausência de calvície, ginecomastia, atrofia testicular e diminuição nos pelos corporais). Desnutrição pode provocar múltiplas deficiências vitamínicas (p. ex., de folato e tiamina), aumento das glândulas parótidas e unhas esbranquiçadas. Naqueles com consumo excessivo crônico de bebidas alcoólicas, a encefalopatia de Wernicke e a psicose de Korsakoff resultam principalmente da deficiência de tiamina. Pancreatite é comum. A hepatite C ocorre em > 25% dos alcoolista; esta combinação piora significativamente a progressão da doença hepática.

Raramente pacientes com esteatose hepática e cirrose apresentam síndrome de Zieve (hiperlipidemia, anemia hemolítica e icterícia).

Diagnóstico da doença hepática alcoólica

  • Antecedente de consumo de álcool confirmado

  • Biomarcadores de álcool

  • Testes hepáticos e hemograma completo (HC)

  • Algumas vezes, biópsia hepática

O álcool é suspeito como causa de doença hepática em qualquer paciente com consumo excessivo e crônico de álcool, particularmente > 80 g por dia. Os pacientes podem ser avaliados quanto a transtorno por uso de álcool utilizando o questionário CAGE (do inglês: need to Cut down, Annoyed by criticism, Guilty about drinking, and need for a morning Eye-opener [necessidade de reduzir o consumo de álcool, irritação com críticas, sentimento de culpa por beber e necessidade de uma "dose matinal"]; ver Detecting alcoholism. The CAGE questionnaire) ou AUDIT (ver Alcohol Use Disorders Identification Test). Quando o consumo de álcool do paciente é duvidoso, a história pode ser confirmada por familiares ou biomarcadores de álcool. O etilglucuronídeo na urina ou no cabelo, o sulfato de etila na urina, e o fosfatidiletanol (PEth) não são afetados por doenças hepáticas. O PeTH é particularmente útil porque tem uma meia-vida de aproximadamente 10 a 14 dias, e mais tempo com o consumo crônico de álcool. Não existe um teste específico para doença hepática alcoólica, mas se o diagnóstico for suspeito, testes de função hepática (tempo de protrombina, bilirrubina, aminotransferases e albumina sérica) e hemograma completo são realizados para detectar sinais de lesão hepática e anemia.

A elevação de aminotransferases é moderada (< 300 UI/L) e não reflete a extensão do dano ao fígado. A razão entre a aspartato aminotransferase (AST) e a alanina aminotransferase (ALT) é 2. A explicação para os níveis baixos de ALT é a deficiência dietética de fosfato de piridoxal (vitamina B6), necessária para a função enzimática. Esses efeitos são menos intensos na AST. A gama-glutamiltransferase (GGT, gamma-glutamyltransferase) sérica aumenta, como resultado de uma indução da enzima pelo consumo de álcool, bem como pelo uso de outros fármacos, pela colestase e pela lesão hepática. A albumina sérica pode estar baixa, geralmente refletindo desnutrição, mas ocasionalmente refletindo clara falência hepática com deficiência enzimática. Macrocitose com um volume corpuscular médio > 100 fL reflete o efeito direto do álcool na medula óssea, assim como anemia macrocítica resultante da deficiência de folato, que é comum entre pessoas com distúrbio por uso de álcool e que estão desnutridas. Índices de gravidade da doença hepática são

  • Bilirrubina sérica, que representa a função secretória

  • Tempo de protrombina ourazão normalizada internacional que reflete a capacidade de síntese

Trombocitopenia pode resultar do efeito tóxico direto do álcool na medula óssea ou da esplenomegalia, que acompanha a hipertensão portal. Leucocitose neutrofílica pode ser resultante da hepatite alcoólica, entretanto, infecções (principalmente pneumonia e peritonite bacteriana espontânea) também devem levantar suspeitas.

Testes de imagens do fígado não são rotineiramente necessários para o diagnóstico. Se feitas por alguma razão, ultrassonografia abdominal ou tomografia podem sugerir esteatose hepática ou mostrar esplenomegalia, evidência de hipertensão portal ou ascite. A elastografia mede o grau de rigidez hepática e detecta fibrose avançada. Esse valioso método diagnóstico pode evitar a necessidade de biópsia hepática para verificação de cirrose e ajudar na avaliação prognóstica. O seu papel exato ainda está sob estudo.

Pacientes com alterações que sugiram doença hepática alcoólica devem ser submetidos a exames de triagem para outras formas tratáveis de hepatopatia, especialmente para hepatites virais.

Uma vez que características da esteatose hepática, da hepatite alcoólica e da cirrose se sobrepõem, a descrição precisa dos achados pode ser mais útil do que rotular o paciente em uma categoria específica, que pode apenas ser determinada por uma biópsia hepática.

A biópsia hepática não é consenso entre os especialistas. As indicações propostas incluem:

  • Diagnóstico clínico duvidoso (p. ex., achados clínicos e laboratoriais conflitantes, elevação inexplicada dos níveis de aminotransferases)

  • Suspeita clínica de > 1 causa para doença hepática (p. ex., álcool e hepatite viral)

  • Desejo de uma avaliação precisa do prognóstico

A biópsia hepática confirma a doença hepática, ajuda a identificar o consumo excessivo de álcool como provável causa e a estabelecer o grau de lesão hepática. Se houver acúmulo de ferro, a quantificação deste acúmulo e a realização de exames genéticos podem excluir a hemocromatose hereditária como a causa da doença hepática.

Para os pacientes com cirrose estável, a American Association for the Study of Liver Diseases (AASLD) recomenda que a ultrassonografia hepática, com ou sem dosagem de alfafetoproteína, deve ser realizada a cada 6 meses para a detecção do carcinoma hepatocelular. A AASLD também sugere que a vigilância não seja feita para os pacientes com cirrose classe C de Child, a menos que estejam na lista de espera do transplante devido à baixa sobrevida esperada (1).

Referência sobre diagnóstico

  1. 1. Heimbach JK, Kulik LM, Finn RA, et al: AASLD guidelines for the treatment of hepatocellular carcinoma. Hepatology 67(1):358-380, 2018. doi: 10.1002/hep.29086

Tratamento da doença hepática alcoólica

  • Abstinência

  • Cuidados de suporte

  • Corticoides e nutrição enteral em casos de hepatite alcoólica grave

  • Transplante hepático

Restrição ao consumo de álcool

A abstinência é a parte principal do tratamento; pode prevenir a continuação da agressão hepática e assim prolongar a sobrevida. Como a adesão ao tratamento é extremamente difícil, uma abordagem multidisciplinar é essencial. Intervenções comportamentais e psicossociais podem ajudar a motivar os pacientes, incluindo programas de reabilitação e grupos de apoio (ver Transtornos por uso de álcool e reabilitação), intervenções breves por clínicos gerais e terapias que exploram e esclarecem a motivação para a abstinência (terapia de aprimoramento motivacional).

Os fármacos, se utilizados, devem complementar outras intervenções. Antagonistas opioides (naltrexona e nalmefene) e fármacos que modulam os receptores do ácido gama-aminobutírico (baclofeno e acamposato) têm curto prazo de benefício na redução do desejo de consumo e dos sintomas de abstinência. Dissulfiram inibe a aldeído desidrogenase, levando ao acúmulo de acetaldeído, e assim o consumo de álcool até 12 horas após o uso de dissulfiram causa rubor e outros efeitos desagradáveis. Entretanto, o dissulfiram não mostrou promoção de abstinência e, consequentemente, é indicado apenas para pacientes selecionados.

Cuidados de suporte

O manejo geral enfatiza os cuidados de suporte. É importante realizar dieta nutritiva e suplementação de vitaminas (em especial, vitaminas B), principalmente durante os primeiros dias após o início da abstinência. A abstinência alcoólica requer a utilização de benzodiazepinas (p. ex., diazepam). A sedação excessiva em pacientes com doença hepática alcoólica avançada pode precipitar um quadro de encefalopatia portossistêmica e deve ser evitada.

A hepatite alcoólica aguda grave costuma requerer hospitalização, geralmente em uma unidade de terapia intensiva, para facilitar a alimentação enteral (a qual pode auxiliar no manejo de deficiências nutricionais) e o manejo de complicações específicas (p. ex., infecções, sangramentos varicosos, deficiências nutricionais específicas, encefalopatia de Wernicke, psicose de Korsakoff, distúrbios hidroeletrolíticos, hipertensão portal, ascite, encefalopatia portossistêmica).

Tratamento específico

Os corticoides (p. ex., prednisolona 40 mg/dia por via oral por 4 semanas, seguida de desmame) melhoram o resultado nos pacientes com hepatite alcoólica aguda grave (função discriminante de Maddrey 32) e que não têm infecção, sangramento gastrointestinal, insuficiência renal ou pancreatite (1). Em um grande ensaio clínico randomizado controlado prospectivo, a prednisolona tendeu a diminuir a mortalidade em 28 dias, mas não alcançou significância estatística (2). Como resultado, pode-se interromper os corticoides antes de se completar um ciclo de 4 semanas se não há resposta aos corticoides, conforme determinado pelo escore de Lille no 7º dia (3).

Além de corticoides e dieta enteral, poucos tratamentos específicos estão claramente estabelecidos. Antioxidantes (p. ex., S-adenosil-l-metionina, fosfatidilcolina, metadoxina) mostram-se promissores na melhora da lesão hepática em cirróticos não avançados, mas são necessários mais estudos. Terapias direcionadas para citocinas, particularmente inibidores do fator de necrose tumoral (TNF)-alfa, visando a diminuição da inflamação, têm resultados conflitantes em pequenos estudos. Pentoxifilina, um inibidor da fosfodiesterase que inibe a síntese do TNF-alfa, tem resultados ambíguos em ensaios clínicos em pacientes com hepatite alcoólica grave. Quando agentes biológicos que inibem o TNF-alfa são utilizados (p. ex., infliximabe, etanercepte), os riscos de infecções ultrapassam os benefícios. Fármacos administrados para diminuição da fibrose (p. ex., colchicina, penicilamina) e para normalizar o estado hipermetabólico (p. ex., propiltiuracil) não promovem benefícios. Outros antioxidantes, como a silimarina (cardo mariano) e as vitaminas A e E, são ineficazes.

Transplante de fígado para cirrose associada ao álcool deve ser considerado para todos os pacientes com doença hepática descompensada (ascite, peritonite bacteriana espontânea, sangramento varicoso, encefalopatia hepática) apesar da abstinência. Com o transplante, as taxas de sobrevida em 5 anos são comparáveis àquelas cuja doença hepática não está relacionada com o álcool. A American Association for the Study of Liver Diseases (AASLD) reconhece as limitações de uma "regra dos 6 meses" de abstinência, encorajando a avaliação do candidato a focar na previsão da probabilidade de abstinência antes e depois do transplante, independentemente do período de tempo de sobriedade (ver Evaluation for liver transplantation in adults: 2013 practice guideline). Durante a pandemia de covid-19, os inscritos na lista de espera de transplantes aumentaram mais de 50% em relação às previsões pré-covid, possivelmente devido ao aumento do transtorno por uso de álcool, bem como alterações na estratificação de risco do centro de transplante (4, 5).

Referências sobre o tratamento

  1. 1. Rambaldi A, Saconato HH, Christensen E, et al: Systematic review: Glucocorticosteroids for alcoholic hepatitis—A Cochrane Hepato-Biliary Group systematic review with meta-analyses and trial sequential analyses of randomized clinical trials. Aliment Pharmacol Ther 27(12):1167-1178, 2008. doi: 10.1111/j.1365-2036.2008.03685.x

  2. 2. Thursz MR, Richardson P, Allison M, et al: Prednisolone or pentoxifylline for alcoholic hepatitis. N Engl J Med 372:1619-1628, 2015. doi: 10.1056/NEJMoa1412278

  3. 3. Forrest EH, Atkinson SR, Richardson P, et al: Application of prognostic scores in the STOPAH trial: Discriminant function is no longer the optimal scoring system in alcoholic hepatitis. J Hepatol 68(3):511-518, 2018. doi: 10.1016/j.jhep.2017.11.017

  4. 4. Anderson MS, Valbuena VSM, Brown CS, et al: Association of COVID-19 With New Waiting List Registrations and Liver Transplantation for Alcoholic Hepatitis in the United States. JAMA Netw Open 4(10):e2131132, 2021. doi:10.1001/jamanetworkopen.2021.31132

  5. 5. Bittermann T, Mahmud N, Abt P: Trends in Liver Transplantation for Acute Alcohol-Associated Hepatitis During the COVID-19 Pandemic in the US. JAMA Netw Open 4(7):e2118713, 2021. doi:10.1001/jamanetworkopen.2021.18713

Prognóstico para doença hepática alcoólica

O prognóstico da doença hepática alcoólica é determinado pelo grau de fibrose hepática e da inflamação. A esteatose e a hepatite alcoólica sem fibrose causadas pelo consumo de álcool são reversíveis, uma vez interrompido o consumo de álcool. Com a abstinência, a completa resolução da esteatose hepática pode ocorrer em 6 semanas. Fibrose e cirrose costumam ser irreversíveis.

Alguns achados na biópsia (p. ex., neutrófilos, fibrose perivenular) indicam um prognóstico reservado. Índices quantitativos foram propostos para predizer a gravidade e a mortalidade utilizando achados laboratoriais de falência hepática, como tempo de protrombina, creatinina (para síndrome hepatorrenal) e nível de bilirrubina. Pode-se utilizar a função descriminante de Maddrey, calculada pela seguinte fórmula:

equation

Nessa fórmula, a bilirrubina é medida em mg/dL (convertida a partir da bilirrubina em micromol/L dividindo-se por 17). Um valor > 32 é associado a maior mortalidade a curto prazo (p. ex., após 1 mês, 35% sem encefalopatia e 45% com encefalopatia). Outros índices incluem a classificação Model for End-Stage Liver Disease (MELD), classificação de Glasgow para hepatite alcoólica e classificação de Lille. Para pacientes com 12 anos, a escala MELD é calculado utilizando a seguinte fórmula:

equation

Uma vez instalada a cirrose e suas complicações (p. ex., ascite, sangramento), a taxa de sobrevida em 5 anos é de cerca de 50%; esta sobrevida é maior na abstinência e menor caso o consumo de álcool seja mantido.

A coexistência de acúmulo de ferro e hepatite C crônica aumenta o risco de carcinoma hepatocelular.

Pontos-chave

  • O risco de doença hepática alcoólica aumenta acentuadamente entre os homens que ingerem > 40 g, especialmente > 80 g, de álcool/dia (p. ex., cerca de 2 a 8 latas de cerveja, cerca de 3 a 6 taças de vinho ou 3 a 6 doses de bebida destilada) por > 10 anos; o risco aumenta significativamente entre as mulheres que ingerem cerca de metade dessa quantidade.

  • Examinar os pacientes utilizando o questionário AUDIT ou CAGE e, quando houver dúvida sobre o consumo de álcool do paciente, considerar o uso de biomarcadores de álcool.

  • Para estimar o prognóstico, considerar resultados histológicos desfavoráveis (p. ex., neutrófilos, fibrose perivenular) e uso de uma fórmula (p. ex., função discriminante de Maddrey, classificação End-Stage Liver Disease [MELD]).

  • Enfatizar a abstinência, fornecer cuidados de suporte, hospitalizar e administrar corticoides para pacientes com hepatite alcoólica aguda grave.

  • Considerar transplante de fígado para pacientes com doença hepática descompensada (ascite, peritonite bacteriana espontânea, sangramento varicoso, encefalopatia hepática) apesar da abstinência.

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